O poder dos evangélicos na política
(Escrito por: Piero Locatelli e Rodrigo Martins – Carta Capital)
Sob forte esquema de segurança, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, inaugurou o maior templo religioso do País, superlativo até nos detalhes. Com 100 mil metros quadrados de área construída, ele é quase quatro vezes maior que o santuário de Nossa Senhora Aparecida. O novo edifício tem 56 metros de altura e a fachada revestida com pedras vindas de Hebrom, cidade que abriga os túmulos de Abraão, Isaac e Jacó em Israel. O quarteirão inteiro pretende ser a recriação do Templo de Salomão, o primeiro de Jerusalém, segundo a Bíblia hebraica. O antigo santuário sobreviveu por quatro séculos, até ser totalmente destruído pelo Império Babilônico no século VI antes de Cristo. Arvora-se a ressurgir, agora, numa movimentada avenida da zona leste de São Paulo, ao custo estimado de 685 milhões de reais.
O templo tem capacidade para abrigar 10 mil fiéis, além de dispor de um estacionamento com 2 mil vagas para carros. O altar seria a réplica da Arca da Aliança, que, segundo a tradição judaico-cristã, guardava os Dez Mandamentos esculpidos por Deus nas tábuas e entregues ao profeta Moisés. Na inauguração do colossal santuário, na quinta-feira 31, a presidenta Dilma Rousseff chegou acompanhada por seu vice, Michel Temer, e pelo ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante. O governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, e o vice-presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, do PT, também se dispuseram a acompanhar o longo culto religioso, permeado por vídeos com histórias bíblicas e relatos de pastores e fiéis que superaram o vício da droga.
Não causa estranhamento tamanho interesse despertado na classe política. Somente a Universal conta com mais de 1,87 milhão de seguidores, segundo o Censo 2010, do IBGE. Os evangélicos das mais variadas denominações somam 42,3 milhões de fiéis, ou 22,2% da população, massa de eleitores cobiçadíssima. Trata-se da religião que mais cresce no Brasil, à custa de um lento, mas constante, declínio católico. Os seguidores da Igreja de Roma passaram de 73,6%, em 2000, para 64,6%, em 2010. Se mantida a tendência, os protestantes poderão representar um terço dos brasileiros na próxima década.
Mesmo após uma semana turbulenta, em que a presidenta concedeu sua primeira entrevista como candidata à reeleição, ouviu queixas de empresários em um evento da Confederação Nacional da Indústria e se reuniu com sindicalistas da Central Única dos Trabalhadores, Dilma fez questão de cumprimentar Macedo pela faraônica obra. Para a campanha petista, é crucial restabelecer laços com a comunidade evangélica, que mantém uma relação conflituosa com o governo e costuma dar muita dor de cabeça nas eleições, como se viu em 2010 com o obscurantista debate sobre o aborto puxado pelos religiosos. Não por acaso, os nove partidos da coligação de Dilma optaram por criar um comitê específico para sensibilizá-los. A missão foi confiada a Marcos Pereira, pastor da Universal e líder do PRB, e aos presidentes do PSD, Gilberto Kassab, e do PROS, Eurípedes Júnior.
Dilma não é a única candidata em busca do voto evangélico. Em 7 de julho, no segundo dia oficial de campanha, o tucano Aécio Neves reuniu-se com o pastor José Wellington Bezerra da Costa, presidente da Convenção-Geral das Assembleias de Deus no Brasil. O encontro, realizado no bairro do Belém, também zona leste da capital paulista, reuniu mais de 2 mil fiéis. Foi articulado pelo ex-governador paulista José Serra, candidato do PSDB ao Senado por São Paulo, e pelo senador Aloysio Nunes Ferreira, candidato a vice na chapa de Aécio Neves.
Em 2010, o pastor Costa declarou apoio à candidatura de Serra, apesar de Marina Silva, então candidata à Presidência pelo PV e hoje vice na chapa de Eduardo Campos (PSB), ser uma devota assembleiana. Além disso, a filha do líder religioso, Marta Costa (PSD), foi indicada como segunda suplente de Ferreira na disputa pelo Senado na última eleição. A despeito das intensas movimentações no campo religioso, o senador José Agripino Maia (DEM), coordenador da campanha de Aécio, despista: “Não existe um planejamento para as igrejas evangélicas”.
Campos, por sua vez, participará de uma reunião em São Paulo com pastores da Igreja Brasil para Cristo no domingo 3. A coordenação da campanha socialista assegura que a vice Marina Silva está distante dessas articulações, por ser refratária à mistura de política com religião. Mas os socialistas admitem dialogar com grandes denominações evangélicas, a exemplo da Assembleia de Deus. A aproximação com setores religiosos ficou a cargo da comissão de articulação e mobilização, tocada por um representante da Rede, Pedro Ivo, e um do PSB, Milton Coelho.
Outros líderes evangélicos reúnem-se em torno da candidatura do pastor Everaldo Dias Ferreira, do PSC. Abertamente contra a descriminalização do aborto e a união civil entre casais do mesmo sexo, o candidato é um árduo defensor da redução da maioridade penal. Embora figure nas pesquisas com algo entre 3% e 4% das intenções de voto, Everaldo deve ter o mesmo espaço que Dilma, Aécio e Campos nos telejornais da TV Globo e nos debates. Mesmo com essa exposição, o pastor dificilmente alcançará uma votação de dois dígitos, avalia o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas. “Everaldo tem potencial para crescer, pode até chegar a um patamar similar ao de Heloísa Helena em 2006, com 6,85% dos votos válidos, mas duvido que vá muito além disso”.
Com bandeiras obscurantistas e forte discurso oposicionista, Everaldo deve facilitar a vida de Aécio e Campos na campanha, inclusive por contribuir na dispersão dos votos evangélicos, o que pode precipitar o segundo turno. Deverá ainda difundir as pautas de líderes neopentecostais que disputam cadeiras no Congresso. Entre seus apoiadores está o deputado Marcos Feliciano (PSC-SP), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e conhecido pelo seu desprezo a minorias. A cúpula do partido acredita que Feliciano triplicará o número de votos obtidos nas eleições passadas. Em 2010, ele arrebanhou 211 mil eleitores. O PSC também aposta na popularidade do cirurgião plástico Roberto Miguel Rey Junior, o Dr. Rey dos reality shows, para alavancar votos de seus candidatos a deputado federal em São Paulo.
Silas Malafaia, que apoiou Serra na última corrida presidencial, também já atua como cabo eleitoral de Everaldo. Líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o pastor escancarou sua estratégia em um vídeo distribuído na internet. “Existem centenas de projetos no Congresso Nacional para detonar a família, detonar os bons costumes da sociedade. Temos de marcar uma posição firme para que Everaldo, se não for para o segundo turno, possa ter quantidade de votos grande”, diz Malafaia. “E aí vamos sentar à mesa e dizer: olha aqui queridão, quer o nosso apoio? Você vai assinar um documento aqui, e não pode votar nisso, nisso, nisso. Esse é o jogo político.”
A principal aposta continua no Poder Legislativo. Nunca tantos pastores foram candidatos como nestas eleições. O número subiu de 193, em 2010, para 270 neste pleito, um aumento de 40%. Como termo de comparação, somente 16 padres católicos são candidatos em todo o País. A bancada evangélica projeta um crescimento de 30%, podendo chegar a 95 deputados federais e senadores. Atualmente, ela conta com 73 congressistas, de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.
Nos últimos quatro pleitos, a bancada evangélica na Câmara passou de 44 para 71 deputados. Apenas em 2006, o número recuou para 32. À época, 16 parlamentares não se reelegeram após terem seus nomes envolvidos na Máfia das Ambulâncias, exposta pela CPI dos Sanguessugas. À exceção desse revés pontual, a tendência sempre foi de crescimento contínuo. O número das bancadas religiosas em assembleias legislativas e câmaras municipais também tem disparado. Já há frentes parlamentares evangélicas organizadas em 15 estados. Nos municípios, é mais difícil mapear a tendência. Pelas contas do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política, o número de “vereadores de Deus” aproxima-se de 10 mil.
Dessa forma, em diferentes pontas do espectro político, os parlamentares evangélicos tentam influenciar a agenda nacional. Primeiro, na conquista de dividendos para as igrejas, como isenção fiscal, a manutenção das leis de radiodifusão, a obtenção de pedaços de ruas para a construção de templos, a instituição de leis que reconheçam a cultura evangélica e forcem a abertura dos cofres públicos a tais eventos. Mas também na criação de obstáculos à aprovação de projetos vistos como uma ameaça à família e aos bons costumes, entre eles os direitos LGBT.
De acordo com o coordenador do Centro de Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Mackenzie, Rodrigo Franklin de Sousa, os neopentecostais têm uma atuação mais coesa e coordenada do que outros religiosos. “Eles descobriram essa ligação entre religião e poder e estão explorando cada vez mais esse viés”, afirma. “Tanto o protestantismo quanto o catolicismo têm, desde o Iluminismo, uma discussão em torno do Estado laico, do que deve ser papel da religião e da política. Mas muitas denominações evangélicas agem de forma mais pragmática.”
Os pragmáticos também estão presentes nas eleições ao governo dos estados. Anthony Garotinho, da Igreja Presbiteriana, e Marcelo Crivella, da Universal, lideram a disputa pelo governo do Rio de Janeiro, e ambos devem servir de palanque para a candidatura de Dilma à reeleição. Nas eleições de 2002, Garotinho terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, com quase 18% dos votos válidos, um dos melhores desempenhos obtidos por um candidato evangélico. Só ficou atrás do resultado de Marina Silva em 2010, quando a ex-ministra conquistou 19,3% do eleitorado na disputa pela Presidência da República.
“É inegável o peso político desse segmento, mas não dá para vencer uma disputa majoritária defendendo os interesses de apenas um setor da sociedade”, pondera o sociólogo inglês Paul Freston, professor da Universidade de Wilfrid Laurier, no Canadá. Um dos principais estudiosos do protestantismo brasileiro e pós-doutor pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, Freston lembra que tanto Garotinho quanto Marina têm um histórico de atuação política anterior à conversão religiosa. “Eles não se apresentaram como o candidato dos evangélicos, e sim como políticos que, entre outras coisas, são evangélicos”, explica. “Além disso, é um equívoco acreditar que todos os protestantes formam um bloco coeso e monolítico. Dentro do mundo evangélico, há muitas divisões de cunho social, teológico e também político. Muitas igrejas continuam refratárias à participação de bispos e pastores na política nacional.”
A opinião é compartilhada por Couto, da FGV. “É tolice acreditar que 22% da população, pelo simples fato de ser evangélica, vai confiar seu voto num pastor ou num candidato da mesma religião”, avalia. “Esse tipo de apelo costuma funcionar mais em cargos proporcionais, para o Legislativo, e é até previsto um certo crescimento da bancada religiosa a cada nova eleição.”
O êxito eleitoral dos candidatos evangélicos deve-se à sede de representação política desse segmento, mas também ao poder midiático de muitas igrejas. Um levantamento feito pelo Instituto de Estudos da Religião, em 2009, identificou 20 redes de televisão que transmitiam conteúdo religioso, das quais 11 eram evangélicas e nove católicas. Apenas a Igreja Universal controla mais de 20 emissoras de televisão, 40 de rádio, gravadoras, editoras e a segunda maior rede de tevê do País: a Record. O arrendamento de espaço para igrejas na tevê aberta é quase uma regra. Na Band, RedeTV! e Gazeta, o horário reservado a programas religiosos ultrapassa 30 horas semanais.
Até o ano passado, a Igreja Mundial do Poder de Deus, uma dissidência da Universal, liderada pelo pastor Valdemiro Santiago, dispunha de 1,6 mil horas mensais de programação na tevê. Ocupava, por exemplo, 23 horas diárias na Rede 21, do Grupo Bandeirantes. Pela exposição na RedeTV!, desembolsava 6 milhões de reais por mês. Não conseguiu, porém, bancar os milionários contratos e perdeu espaço para o rival Macedo. Mesmo com a gigantesca despesa nas obras do Templo de Salomão, a Universal conseguiu ampliar sua presença na tevê.
Aparentemente, parece nunca faltar dinheiro para os projetos da igreja. Nem por isso a Universal deixa de buscar formas para baratear seus custos. O Templo de Salomão foi erguido com um alvará de reforma, e não de construção. Com a manobra, a Universal deixou de pagar à prefeitura 5% do valor da obra, cerca de 35 milhões de reais, destinado a melhorias no entorno. Concedido em 2008, o documento foi expedido pelo antigo Departamento de Aprovação de Edificações, então chefiado por Hussain Aref, afastado do cargo após denúncias de corrupção e enriquecimento ilícito. O caso é investigado pelo Ministério Público, mas a Universal diz não ter sido notificada sobre qualquer irregularidade. “É, no mínimo, prematuro afirmar que tenha havido fraude em qualquer etapa da construção do Templo de Salomão, que transcorreu ao longo de quatro anos sob intensa fiscalização e grande transparência”, afirmou a igreja por meio de nota.
Antes mesmo da inauguração, o novo santuário atraía visitantes de diferentes regiões do País, que chegam em caravanas com crachás pendurados para entrar no prédio com horário marcado. Uma única excursão do Rio de Janeiro trouxe 105 ônibus cheios para assistir a um culto. Bispos, pastores, obreiros e voluntários da igreja são os únicos autorizados a entrar no templo até agora. Os fiéis seguem regras rígidas. Nada de celulares, falatório, risadas ou roupas curtas.
Em frente ao Templo de Salomão, há uma Igreja Evangélica da Assembleia de Deus e a Paróquia São João Batista, praticamente uma miniatura diante do novo edifício. No restante da avenida há ao menos dez outros locais que abrigam cultos evangélicos, incluindo um da própria Universal. A vizinhança se completa com lojas de equipamentos para restaurantes, móveis, material de costura, distribuidoras de diversos produtos, padarias baratas e ambulantes. Por lá também floresce um comércio com miniaturas do templo, bíblias e camisetas religiosas.
A construção também serve para atrair outros fieis. Fã do padre Marcelo Rossi, a copeira Odila Carla Ferreira, de 46 anos, ainda faz parte da maioria católica, mas demonstra como as fronteiras religiosas são tênues. Ela dedicou um dia de suas férias para “admirar” o local. “Não tenho carinho pela Universal, mas aprecio isso aqui. O templo foi feito para todos os cristãos”. A postura de Odila reflete a estratégia bem-sucedida da Universal ao não identificar seu templo. Não há referências claras de que a construção foi feita pela igreja de Macedo. Os símbolos mostrados também são utilizados por outras religiões, como a estrela de Davi, a arca, o Menorá (candelabro judaico) e as oliveiras. A longuíssima barba cultivada por Macedo ajuda a personificar Moisés, profeta adorado por várias religiões.
Segundo Franklin de Sousa, os fiéis transitam facilmente entre diferentes denominações, e Macedo tenta tirar proveito disso. “A Universal já atrai fiéis de outros credos há muito tempo, porque a religiosidade brasileira é dada a esse tipo de sincretismo”, diz. “Algumas pessoas podem ter vergonha de admitir que vão à Universal, então esse templo dissociado dela pode produzir esse efeito,” explica o professor do Mackenzie. E talvez angariar muitos votos. Voz da Universal no Congresso, o PRB hoje conta com 10 deputados federais e 21 estaduais. O presidente da legenda, pastor Marcos Pereira, diz ser possível dobrar o número nestas eleições. Com um palanque tão vistoso, é difícil contestar a profecia do líder religioso.
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