Você já rebateu um absurdo hoje?
(Crônica por: Matheus Pichonelli – Carta Capital)
Tenho a péssima mania de responder absurdos com silêncio. Quanto maior o absurdo, menor a vontade de falar. Percebi a gravidade dessa relação porque tenho andado muito quieto ultimamente. A vida em rede me acostumou mal: habituado a conversar com quem já tem uma predisposição em ouvir, aprendi a despejar na internet, não sem certa arrogância, tudo o que tinha vontade de dizer e não disse quando o taxista falou que a cidade só teria jeito quando pegassem o bairro pobre, jogassem gasolina e botassem fogo. Ou quando a socialite levantou a taça de espumante e, com um olho na piscina e outro na bolsa Louis Vuitton, se disse assustada com a calamidade em que vivemos no Brasil.
Tudo começou, acho, na adolescência, quando a vizinha gente-boa levou uma tarde a me desejar boa sorte na minha viagem a São Paulo, onde dali em diante eu passaria a morar e estudar. Atenciosamente, ela me deu um roteiro de passeios, dicas culturas e cuidados na metrópole. Ao fim da conversa, soltou um “só tome cuidado porque é uma cidade infestada por imigrantes, e eles estão acabando com tudo”. Ainda hoje me questiono por que não a rebati, ali, na lata. Foi porque só tinha 19 anos? Por não querer ser indelicado? Para não azedar a boa vizinhança? Mas de que vale ter vizinhos assim, que só te respeitam porque te veem como um igual?
Na conversa, ela me pedia para reparar como os imigrantes de vários sotaques se espalhavam em nossa cidade do interior trazendo sujeira e insegurança. “Em São Paulo é ainda pior”, reforçava. Lembrei que, naquela época, uma série de assaltos a repúblicas estudantis das redondezas era noticiada pelos jornais locais. Pouco depois, a quadrilha foi identificada, e qual não foi o choque quando descobrimos que um vizinho nosso, branco e de classe média, estava envolvido. Na mesma época, acordamos certa manhã de sonos intranquilos com a Polícia Federal à porta do prédio. Os agentes estavam em busca de um morador, querido por todos, que integrava um suposto esquema ilegal de fabricação e comércio de couro. A realidade desmentia a tese daquela senhora que se gabava de ter livros por todo canto de casa, embora não tivesse olhos para entender o mundo para além da própria janela. “A insegurança é sempre o outro”, concluía comigo mesmo, sem jamais dizer nada.
À medida que me adaptava à vida em São Paulo, e aos círculos menos inóspitos da vida universitária, me acostumei a falar em guetos. Neles, enquanto tentávamos entender a lógica da discriminação em um país ainda marcadamente desigual, dividíamos nossas angústias como numa roda de reabilitados. Falávamos da tia racista que achava um absurdo o namoro do artista mulato com a atriz branca. “Preconceito contra eles mesmos”, repetia a parente, para a concordância bovina de todos à mesa.
A sequência era conhecida. “Bons eram os tempos dos militares; tomávamos cascudos, mas andávamos na linha”. “O Brasil é um país de belezas naturais e um povo criado na malandragem”. “Político é tudo igual”. “Virou gay porque faltou chinelada”. “Virou lésbica porque não encontrou o cara certo”. “Ninguém mandou usar saia”. E etc, etc. Nos círculos sociais, lidamos o tempo todo com autodidatas especializados em política e sociedade.
Toda vez que essas conversas reaparecem, é como se eu tivesse a chance de rebater aquela vizinha, já sem as amarras da imaturidade. Dias atrás ela reapareceu em uma conversa num Café decorado e com ar-condicionado. Vestia terno e tinha certeza que o calor tropical inibia a vocação do brasileiro ao trabalho. Exatamente à sua frente, separado apenas por um vidro blindado, um pedreiro se derretia para erguer um muro de tijolo sob o sol a pino. Pensei em apresentar um para o outro, mas, como sempre, calei.
“Deixem falar. São só ignorantes”, dizem os amigos, enquanto guardam os cartuchos para os grandes debates com professores, autoridades públicas, grandes corporações, etc.
A verdade é que nessas manifestações gratuitas de ingenuidade/ignorância não está o exercício saudável do debate. Está a fórmula autoritária de falar e ser ouvido e, se rebatido, correr para a linha segura do tatame com uma velha muleta: “É só a minha opinião, você precisa respeitar”. Confundimos, então, silêncio com respeito, e determinamos arbitrariamente quem merece e quem não merece ser contrariado. Aquela lição canhestra herdada da ditadura, a de que política não se discute, ainda faz estragos: dizer o que se pensa se transformou em uma espécie de pregação a convertidos. Por aqui, debate, conflito e contraponto não sensibilizam consensos, mas melindres. Por isso, e para evita-los, calamos.
Tempos atrás, quando todos pareciam satisfeitos em seus quadrados, essas pontas de fagulha pareciam inofensivas. Agora os tempos mudaram. Em parte devido à conjuntura mundial, em parte devido a apostas equivocadas dos governos locais, em parte devido à insensibilidade para perceber que os modelos se esgotaram, o cobertor se encurtou, as saídas se estreitaram, a crise se avizinhou, o pirão acabou e a primeira reação nesses guetos é garantir primeiro a sua farinha.
Como? Com balas.
Aquele desprezo em relação ao “outro” se transformou em solução para o mundo. “Se ele se beneficiou de uma estrutura que já não me beneficia; se ele quer acesso a um sistema que antes era apenas meu; se ele votou ao contrário das minhas convicções, então não são seus contrapontos que precisamos eliminar; são os seus autores”. Por isso temos assistido a uma escalada assustadora de discurso de ódio e incitação à violência em tempos recentes.
O mundo ficou mais complicado e, à medida que se complicou, se tornou um território propício para associações desastradas de ideias. Elas pipocam o tempo todo em todo canto. Acuados, grupos antes hegemônicos encontraram, nos impasses da crise política e econômica (não necessariamente nessa ordem), pretextos para tirar do armário todo o desprezo guardado por minorias e sistemas de representação democrática – a começar pelo direito ao voto. Erra quem pensa se tratar de uma disputa entre elite e remediados. A disputa é normativa, e leva muita gente das classes menos abastadas a reproduzir absurdos em público – para não dizer criminosos.
Durante a semana, relatei em minhas redes a história de um palhaço (literalmente) que entrou no ônibus de Vinhedo à Unicamp para pedir dinheiro a um projeto social e pregar a palavra do Senhor. A sessão se transformou numa aula de misoginia: o sujeito atribuía à novela a decadência das famílias. Pela sua lógica, os homens andavam violentos porque estavam cansados de serem trocados pela TV. Pior: quando agiam, tornavam-se vítimas de leis como a Maria da Penha. Entre risos e pausas para a reflexão, o sujeito se queixava das aleivosias precoces das meninas, que engravidavam cada vez mais cedo e cada vez mais cedo lotavam hospitais com casos de câncer de mama. Porque o peito foi feito para amamentar, dizia o palhaço, não para silicone. Aquele discurso comum, que vem desde Eva e coloca o homem como vítima de demônios exteriores a ele – a tentação, a opressão da lei, a novela, as saias – é a argamassa da cultura do estupro que tanto refutamos quando ela se manifesta entre os formadores de opinião, sobretudo apresentadores babetas de talk show. É também a argamassa de políticos conservadores que fazem do espaço público uma cruzada para bandeiras medievais. Mas só reagimos quando o estrago já está feito – e a ideia torta de mundo virou projeto de lei ou corrente de Facebook.
Por isso decidi contrapor o palhaço. Disse que ele ofendia as mulheres daquele ônibus ao justificar a violência masculina e ao associar uma doença grave com uma questão moral. Foi chato. Foi duro. Gaguejei. Passei o resto da viagem com os olhares voltados a mim até meu ponto. Mas falei – e só assim o palhaço parou de dizer groselhas no ônibus, e as pessoas pararam de concordar. Ou fingir que concordavam.
Pode parecer uma bobagem (e talvez seja), mas deixar passar a oportunidade de rebater um argumento torto porque a pessoa é ignorante ou mal informada não nos torna respeitosos ao diálogo. Só nos torna coniventes. E arrogantes, porque escolhemos arbitrariamente quem merece ou não ser contestado – e o sujeito humilde, como o palhaço do ônibus, não é menos digno de arremedo do que de pena.
Por isso, amigos, nesses tempos de confusões galopantes e buscas por soluções fáceis, não deixem os absurdos ficarem como a última palavra. Ninguém é dono da verdade, mas quando o absurdo se torna verdade é porque alguma coisa saiu errada. Porque a razão se acomodou no gueto dos entendidos e não quer descer do pedestal. Pois desçam. Ninguém vai matar de raiva ou de fome se, ao defender a limpeza ética dos ditadores, for lembrado que o mais duro dos generais-presidentes adotou a própria neta para estender a pensão vitalícia para a família. E que a farra das pensões de gente graúda pesa mais aos cofres públicos do que qualquer (assim chamada) “esmola”.
Ninguém fará estragos se perguntar ao entusiasta de regimes autoritários qual a vantagem entre poder investigar desvios públicos e não poder – ou levar para o camburão quem ameaçar desobedecer. Ou quais foram mesmo os crimes cometidos por opositores “suicidados” nos porões do regime por terem simplesmente feito o que se faz hoje nas ruas: contestar. Ou qual o país que instituiu a pena de morte e controlou a violência dita “endêmica”. Ou qual o país onde deputados aceitaram propina para colaborar com uma empresa inexistente criada por uma reportagem de jornal (eu conto: a Inglaterra).Também não fará mal a ninguém perguntar onde está escrito na Bíblia que as lâmpadas fosforescentes podem ser usadas contra casais do mesmo sexo.
Ou do que exatamente nos defendem os Gladiadores do Altar”. Ou questionar quais são mesmo as demandas históricas de brancos e heterossexuais que, acuados pela “ditadura gay”, querem sair às ruas para defender direitos que lhe são negados. São só perguntas, e não podem ofender mais do que o silêncio de quem é diariamente ofendido pelos absurdos que podem ser só absurdos, mas entram na história como a última palavra.
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