“Cadáveres ambulantes”: fome prolongada em Gaza ameaça devastar geração inteira de palestinos com danos permanentes

A rápida deterioração da situação humanitária na Faixa de Gaza causada pela escassez generalizada de alimentos devido ao bloqueio imposto por Israel na guerra com o grupo terrorista Hamas — com o registro de ao menos 43 mortes de fome desde domingo — levou duas agências das Nações Unidas a soarem o alarme nesta quinta-feira e na quarta: segundo a UNRWA, voltada para os refugiados palestinos, 20% das crianças na Cidade de Gaza, capital do enclave, estão subnutridas, com riscos graves à sua saúde; por sua vez, o Fundo de População da ONU (Unfpa) alertou que o território atravessa uma crise de nascimentos, potencializada agora pela fome, com uma queda de 41% na taxa de natalidade desde 2022, ano anterior à guerra.

Com hospitais lutando para atender a enorme quantidade de palestinos feridos por bombardeios israelenses — e, mais recentemente, por tiros disparados contra multidões que correm em direção a comboios ou pontos de distribuição de ajuda humanitária — cresce também o número de pacientes que sofrem e morrem de desnutrição severa, com danos permanentes nos corpos e mentes dos que sobrevivem. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, pelo menos 113 pessoas morreram por desnutrição no enclave desde o início do conflito em outubro de 2023, das quais 81 eram crianças e adolescentes — cerca de um terço das vítimas faleceu desde domingo, indicando o agravamento da crise.

A fome força o corpo a consumir músculos e órgãos como fonte de energia, o que pode causar lesões irreversíveis. Especialistas ouvidos pelo jornal britânico The Guardian explicam que, em crianças, ela compromete o desenvolvimento físico e mental, com efeitos que podem afetar mesmo a saúde dos filhos dos sobreviventes no futuro. Ela também corrói os laços sociais, uma vez que empurra pessoas a se voltarem umas contra as outras na luta desesperada por comida, por vezes levando-as a adotar comportamentos humilhantes, violentos ou degradantes para sobreviver.

— É possível analisar a fome como um fenômeno biológico vivido por indivíduos, mas ela também é uma experiência social coletiva — disse ao Guardian Alex Waal, diretor executivo da Fundação para a Paz Mundial da Universidade Tufts, nos EUA. — Muitas vezes, elementos sociais como o trauma, a vergonha, a perda da dignidade, a violação de tabus e a quebra de vínculos têm mais peso na memória dos sobreviventes do que a experiência biológica individual. E quem impõe a fome sabe disso. Sabe que está, na prática, desmontando uma sociedade.

Hidaya, palestina de 31 anos, embala seu filho Mohammed, de 18 meses, com sinais de desnutrição, em um campo de refugiados em Gaza, em 24 de julho de 2025. — Foto: Omar al-Qattaa / AFP

Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo grupo terrorista Hamas, pelo menos 113 pessoas morreram por desnutrição no enclave desde o início do conflito, das quais 81 eram crianças e adolescentes. Somado a isso, 260 mil crianças com menos de 5 anos precisam de suporte nutricional, e mais de 28,6 mil casos de desnutrição infantil foram registrados neste ano. Somente em 2025, mais de 1,5 mil nascimentos prematuros relacionados à desnutrição foram relatados, e 100 mil gestantes e lactantes são afetadas pela escassez de alimentos. À BBC, uma mulher disse torcer para que seu bebê permaneça no ventre e ela não tenha que dar à luz “nessas circunstâncias difíceis”.

O cenário a que ela se refere foi reconhecido nesta quinta-feira pela UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos: segundo o órgão, uma a cada cinco crianças na Cidade de Gaza está desnutrida, e os casos aumentam a cada dia. Em comunicado, o comissário-geral da organização, Philippe Lazzarini, citou um colega que lhe disse que, no enclave, as pessoas “não estão nem mortas nem vivas, são cadáveres ambulantes”. Mais de 100 organizações internacionais de ajuda humanitária e grupos de direitos humanos também alertaram para uma fome em massa, pressionando os governos a agir.

Expectativa de vida reduzida

Depois de pôr fim a um cessar-fogo de dois meses em meados de março e reiniciar sua campanha militar em Gaza, Israel impôs um bloqueio total à entrada de suprimentos por cerca de 80 dias, afirmando que o objetivo era pressionar o Hamas à rendição. Após pressão internacional, Israel estabeleceu com os EUA um sistema privado muito criticado sob a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), que tem poucos pontos de entrega no sul do enclave e apenas um no centro do território. Segundo Israel, a entrega por meio da GHF era necessária para evitar desvios e sabotagem da ajuda pelo Hamas. O outro sistema de entrega consiste em comboios humanitários trazidos por organizações internacionais independentes.

De acordo com a ONU, mais de mil palestinos foram mortos pelas forças israelenses desde o início da atuação da GHF, no fim de maio, enquanto buscavam comida em Gaza. Deste total, 766 foram mortos perto dos pontos de entrega da GHF e 288 perto do comboios humanitários. No início de julho, o Exército reconheceu ter feito disparos contra civis em busca de ajuda quando houve “ameaça direta”, mas disse que o número de mortos divulgados era “exagerado”.

— Não se trata de uma declaração formal de fome ou de um número específico de caminhões ou refeições. Trata-se da tentativa de Israel de manter Gaza faminta indefinidamente, sem provocar mortes em massa imediatas por fome ou doenças, que é o que caracteriza tecnicamente uma fome — disse Chris Newton, analista do International Crisis Group, ao Guardian. — Esse experimento não pode durar para sempre, embora as consequências da fome durem.

A campanha militar israelense em Gaza começou após o ataque sem precedentes do Hamas no sul israelense em 7 de outubro de 2023, que resultou na morte de quase 1,2 mil pessoas, em sua maioria civis. Na ocasião, 251 pessoas foram feitas reféns, das quais 50 seguem em cativeiro. Destas, 27 estariam mortas, segundo o Exército. De acordo com o Ministério de Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, o conflito deixou 59.587 palestinos, majoritariamente civis.

Autoridades israelenses contestam esses números como não confiáveis, mas entidades como a Organização Mundial da Saúde e a ONU os consideram críveis. No início do ano, a prestigiada revista científica britânica The Lancet apontou que, nos primeiros nove meses da guerra, houve uma subnotificação de 40% no número de mortos.

Samah Matar segura seu filho Yousef, de 6 anos, ao norte da Cidade de Gaza, em 24 de julho de 2025; com paralisia cerebral e desnutrição grave, Yousef perdeu cerca de 4 kg desde o início da guerra. — Foto: Saher Alghorra /The New York Times

Em fevereiro, outro estudo publicado pela mesma revista estimou que a expectativa de vida em Gaza foi praticamente reduzida pela metade (-46,3%) desde o início da guerra. Segundo a pesquisa, a expectativa caiu de uma média pré-guerra de 75,5 anos para 40,5 anos no período entre outubro de 2023 e setembro de 2024. A redução foi maior entre os homens (-51,6%), com uma queda de 73,6 anos para 35,6 anos, do que entre as mulheres (-38,6%), cuja expectativa de vida passou de 77,4 anos para 47,5 anos. O estudo, porém, destacou que a abordagem usada para estimar essas perdas era conservadora, pois não levava em conta os efeitos indiretos da guerra, como a fome e a falta de acesso à saúde.

— Ninguém em Gaza está fora do alcance da fome neste momento. Nem mesmo eu — afirmou Ahmed al-Farra, chefe da ala pediátrica do Hospital Nasser, no sul do enclave. — Falo com você como profissional da saúde, mas também estou procurando farinha para alimentar minha família.

Crianças desnutridas

Nesta semana, o Programa Mundial de Alimentos afirmou que a crise de fome em Gaza atingiu “níveis novos e chocantes de desespero”, com um terço da população passando dias consecutivos sem comer. Al-Farra relatou um aumento acentuado nas mortes de crianças por desnutrição nos últimos dias: dos 113 óbitos por fome nos 21 meses de guerra, 43 ocorreram neste mês, incluindo ao menos 16 crianças —muitas das quais, segundo ele, não apresentavam condições médicas prévias.

Um dos casos mais é o de Siwar Barbaq, uma bebê nascida saudável e que, aos 11 meses, deveria pesar 9 kg, mas não chega a 4kg. Yahia al-Najjar, de apenas 4 meses, morreu na terça-feira por desnutrição severa no Hospital Americano de Khan Younis. Sua tia, Safa al-Najjar, disse que o bebê nasceu saudável, mas que sua condição se deteriorou rapidamente. A mãe, que se alimentava de apenas uma refeição por dia — à base de lentilhas ou arroz — não conseguia produzir leite suficiente, algo que não havia acontecido com seus três filhos anteriores. A família não tinha como comprar fórmula infantil.

— Vou dormir com fome e acordo com fome. Não vemos pão há algum tempo. [Minha filha] está dormindo há uma semana. Não tenho dinheiro para comprar leite ou fraldas — disse à BBC Najah, viúva de 19 anos cuja filha está desnutrida, acrescentando que teme ser baleada se tentar ir até um ponto de distribuição de ajuda. — Estamos morrendo de fome, sem nada. Vivemos em tendas. Estamos acabados.

(Fonte: O Globo/New York Times)

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