Invasões escondem o drama de famílias invisíveis
Como feridas sociais que só crescem, invisíveis, pelas esquinas da capital pernambucana, as invasões – ou ocupações irregulares, como também são chamadas – escondem o cotidiano de quem vive em situação de extrema pobreza no Recife, mais de 100 mil pessoas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social. Os filhos de dona Rúbia Ferreira Valeriano da Silva, de 30 anos, sentem as marcas dessa desigualdade desde o nascimento. “Aqui não tem água. A gente pega de balde na bica para se limpar. Luz teve que ser na ‘gambiarra’. Na hora da necessidade é que fica difícil. Tem que fazer num saco. Depois, é só jogar na rua”, explica a mãe de nove filhos.
Ela vivia em um quarto erguido com tábuas velhas num casarão abandonado na Rua da Saudade, no bairro da Boa Vista, coração do Recife. Na última sexta-feira, ela, as crianças e outras 69 famílias que dividiam o precário espaço foram retiradas do local. A congregação Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus, proprietária do loca, pediu a desapropriação da área. O futuro para eles, provavelmente, repetirá o passado de destinos incertos.
Em um cruzamento simples de dados, é possível compreender a dimensão dessa tragédia social: 78% dos municípios pernambucanos são considerados de baixa renda, ou seja, a população possui renda mensal per capita de R$ 180,00 a R$ 333,00. Em situação de extrema pobreza, essa renda não ultrapassa R$ 70 ao mês. Na Região Metropolitana, 24,5% dos cidadãos em idade produtiva recebem até meio salário-mínimo, o equivalente a R$ 394,00. No último Censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) apontou que o Recife tem 1,5 milhão de habitantes. A Secretaria de Finanças contabiliza a existência de 403 mil imóveis, incluindo comerciais, na cidade. Assim, a falta de emprego e moradia popular se reflete no flagelo das famílias.
Pirrita, como dona Rubia gosta de ser chamada, sabe bem o que significam esses números . “Eu morava na casa do meu sogro, mas meu marido usava drogas. Peguei os meninos e saí. Não tinha para onde ir e me falaram que aqui tinha lugar. Eu vim”, conta. Sem trabalhar, ela pede ajuda nas ruas para sobreviver. Pagava R$ 30 por um quarto no casarão. Por conta das limitações, teve que entregar três de suas crianças para outras famílias. “Minha menina agora tem a vida que eu queria dar para eles, mas não posso. Deixei quando tinha um mês. Agora, ela já fez sete anos e até estuda em colégio particular. Às vezes, ainda consigo ver (a garota), mas o povo não gosta”, desabafa. Um casal de filhos gêmeos, com pouco mais de um ano, teve a mesma sina.
Não muito longe do casarão da Saudade, na Avenida Cruz Cabugá, um dos principais corredores de tráfego do Recife, um beco conta a história de outras sete famílias, incluindo a de Lucas Gabriel, de 9 anos. O menino de sorriso fácil encontra alegria batendo bola no corredor de barracos. Ele foi abandonado pelo pai ainda bebê, a mãe, viciada em drogas, vive pelas calçadas do bairro de Santo Amaro. “Isso não vai me tirar da minha vó, não, né?”, pergunta preocupado.
A avó, dona Maria Madalena da Silva, de 59 anos, é a família que Lucas conhece. Abandonada pelo marido, ela teve que deixar a casa em que viviam, em uma invasão do outro lado da rua, em busca de abrigo. Hoje, sobrevive catando papelão. “Eu tive medo. Não queria ficar por aí com o menino. Até que apareceu um homem e disse que aqui tinha lugar para mim”, confidencia. Esse homem, cujo nome ela não recorda mais, havia construído um barraco, mas precisava deixar a cidade. “Fiquei com a casa e com terreno”. Seis anos já se passaram e ela foi cedendo espaço para outras famílias sem rumo, como esteve um dia.
No mapeamento da pobreza traçado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, das mais de 100 mil pessoas em situação de extrema pobreza na capital, 73% são negros, 55% são mulheres, 17,5% têm mais de 15 anos, mas não sabem ler e nem escrever. Estigmas carregados por dona Mary, de 45 anos, que preferiu não dizer seu nome de batismo. Com o neto nos braços, ela conta que saiu de casa fugida há três anos quando seu filho, na época com 13 anos, foi apreendido pela primeira vez.
“A polícia pegou. Ele estava roubando, mas deve ter droga no meio também. Eu não sei o que ele disse para os homens, mas não ia ficar esperando invadirem minha casa. Não se pode confiar em ninguém”, desabafa. Mãe de quatro filhos, Mary tem 11 netos, mas só cuida de um, Abraão, de 2 anos, filho do adolescente que a fez deixar seu lar às pressas. “A verdade mesmo é que, se estamos aqui, é porque Deus quer”, dispara. “Mas a gente tem que sofrer calado”, interrompe o marido, Lek, de 26 anos, que toma conta de carros na rua e traz para casa a única renda da família. Eles moram em uma invasão na Rua Silva Ramos, bairro da Boa Vista. “Já teve muita gente morando aqui, mas, se começar a bagunçar, a gente expulsa. Já apanhei da polícia por conta de um baseado. Até meteram bala. A gente fica ligado, né? O dono me conhece e deixa a gente cuidar”, esclarece Lek. Eles dividem a casa com a família de Robson, também flanelinha, que vive com a esposa e um bebê de dois meses.
Déficit difícil de sanar
De invasão em invasão, as cicatrizes da segregação se repetem. No levantamento do Ministério, mais de 49 mil pessoas não têm acesso à rede de esgoto na capital; 9,6 mil não têm sequer banheiro em casa; 7,3 mil não têm captação de água adequada; e mais de 400 ainda vivem sem energia elétrica. O sonho dessas famílias ainda é ter um lar. Ou, pelo menos, conseguir um auxílio-moradia.
O benefício, R$ 200, é concedido pela gestão municipal para que as famílias consigam pagar o aluguel de um imóvel até obter uma solução definitiva. O diagnóstico, no entanto, não garante a cura. Somente em maio deste ano, 5,7 mil famílias receberam o auxílio. Em contrapartida, só existem quatro habitacionais prontos. Eles totalizam 524 moradias. Outros três conjuntos deverão ser concluídos até o fim do ano. Serão teto para mais 652 famílias.
Para a Secretaria de Controle Urbano, é considerada invasão ou ocupação irregular qualquer imóvel erguido sem autorização do poder público. Na Rua Neto Mendonça, nos Aflitos, 17 famílias dão novo significado ao termo. Entre elas, a de dona Maria José da Silva, de 53 anos, primeira moradora do casarão.
“Estou aqui há mais de 30 anos. Quando cheguei, não tinha ninguém. Era uma casa de festas abandonada. Os carroceiros já tinham até saqueado. Limpei e tirei mais de oito caçambas de lixo e mato”, lembra. “Fiz meu barraco de madeirite, não podia nem encostar que caía. Era só um quadrado, mas tinha quarto, sala e cozinha. Até que apareceu um povo querendo invadir. Chamei a polícia, mas disseram que não era meu e que eu não podia fazer nada. Assim começou nossa história”.
Juridicamente, Maria e seus vizinhos lutam pelo direito de ser donos de suas casas. A lei sobre usucapião prevê a aquisição da propriedade ou qualquer direito real pela posse prolongada da coisa e pode recair sobre bens móveis e imóveis. “Mas a preocupação da gente mesmo é o que vem depois. Ninguém está aqui porque quer. Não temos para onde ir. A gente se dá bem, mas não pode dizer que é feliz. Se legalizarem, vão querer cobrar. Como é que a gente vai pagar IPTU, luz e água se nem temos o que comer direito?”, questiona.
No casarão da Saudade, a primeira a chegar foi Branca, há três anos. “Eu morava na rua. Meu ex-genro era vigia daqui e disse que não estavam pagando o salário dele. Pulei o muro, olhei a casa, peguei a marreta e arrombei. Abri minha própria porta”, detalha. A rotina entre ratos, lixo e lama não a preocupa. “Quem já viveu na rua não tem medo de nada. Se o Choque vier me tirar, arrumo outro lugar para invadir. A vida é assim para quem não tem escolhas”, disse, sem saber, uma semana antes de ser despejada.
As Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus acionaram o Tribunal de Justiça para pedir a desapropriação da área. Através de ordem judicial, Branca, Pirrita e todos os outros moradores foram retirados no dia 29 de maio. A Prefeitura do Recife prometeu auxílio-moradia por seis meses e um ano de cesta básica para todos, mas só a partir de julho. Procurada pela reportagem, a Arquidiocese de Olinda e Recife disse que não iria se pronunciar sobre o caso. A advogada Rilane Dueire informou apenas que a congregação ficou consternada com a depredação do imóvel.
(fonte: Diário de Pernambuco)
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