A demolição do SUS

(fonte: Carta Capital)

O atual subfinanciamento ganhou contornos dramáticos com a aprovação do Orçamento Impositivo pelo Congresso em março deste ano. Considerado uma derrota para o governo, o dispositivo cria uma nova lei para os gastos na Saúde, ao atrelar o investimento da União às receitas correntes líquidas. Por causa da estagnação econômica, a arrecadação de impostos está em queda e, por consequência, caem os valores repassados ao sistema.

Por seu lado, o governo anunciou o bloqueio de 13,4 bilhões de reais do Orçamento da Saúde em 2015, parte do ajuste fiscal. Apesar de preservar os programas prioritários, os cortes atingirão áreas de custeio do ministério e emendas parlamentares. Internamente, a Pasta tenta inserir uma emenda no Projeto de Lei Orçamentária para que, em caso de queda no volume de recursos, voltar a valer a regra anterior, baseada na variação nominal do PIB.

Faltam investimentos, sobram demandas

Faltam investimentos, sobram demandas

A necessidade de mais recursos para o SUS é admitida pelo ministro Arthur Chioro. Não há, porém, consenso em relação às fontes. “Esse financiamento virá do imposto das grandes fortunas ou da taxação das heranças? Vamos direcionar os recursos do seguro Dpvat? Existem várias possibilidades a serem discutidas com a sociedade.” Segundo Chioro, novas fontes são necessárias para “dar sustentabilidade ao sistema”.

A preocupação do ministro explica-se pela tendência de envelhecimento da população, o que vai aumentar a demanda por serviços de saúde. Há ainda o baixo investimento de recursos públicos em comparação com outros países com sistemas semelhantes ao SUS. Segundo a Organização Mundial da Saúde, em 2013 apenas 6,93% dos gastos públicos brasileiros foram para o setor. No Reino Unido, esse porcentual é de 16% e na Argentina, de 31%.

Para o ex-coordenador da área de saúde do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, Sergio Piola, a principal causa do baixo investimento é a queda relativa da participação da União. Hoje, segundo ele, 57% dos recursos provêm dos estados e municípios, cujos repasses superam o dobro do estipulado por lei. “Os municípios estão explodindo”, afirma. “Por lei, as prefeituras devem contribuir com 15% de suas receitas, mas hoje os municípios aplicam, em média, mais de 20%. Em alguns casos, a participação chega a 30%.”

Chama a atenção a alta participação da saúde privada. Em todos os países com sistemas de cobertura universal, o porcentual público no financiamento é superior a 60%. No Brasil fica abaixo de 50%. Os investimentos dos planos de saúde nem sempre se traduzem em qualidade no serviço. Ao longo da última década, a chamada saúde suplementar liderou o ranking de reclamações dos consumidores no Procon. Os planos perderam 88% das ações movidas contra eles na Justiça, por conta de problemas no cumprimento das obrigações contratuais.

No Congresso, não há sinalização de aumento de investimentos. Ao contrário. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, encampa diversas ações que minam a sustentabilidade da rede pública. Em 2013, ele relatou a Medida Provisória 627, que anistiava a dívida dos planos com o SUS em 2 bilhões de reais. O estrago só não se concretizou em decorrência do veto de Dilma Rousseff.

Cunha apoiou ainda duas outras iniciativas de fortalecimento do sistema privado em detrimento do público: votou a favor da MP 656, que permite a entrada de capital estrangeiro na assistência à saúde, e redigiu a Proposta de Emenda Constitucional 451, que insere “planos de assistência à saúde” como direitos dos trabalhadores.

Na prática, a PEC 451 obriga as empresas a pagar planos de saúde privados para todos os empregados. Dessa forma, o número de clientes das operadoras de saúde privada saltaria dos atuais 50 milhões para 71,5 milhões. Na proposta, Cunha justifica que “saúde é direito de todos”, por isso as empresas deveriam pagar pelos planos. Segundo críticos, não foi levado em conta o direito à saúde universal e pública garantido pela Constituição. O cidadão só teria direito ao benefício se estivesse empregado.

Já em 2015, logo após ser empossado como presidente da Câmara, Cunha impediu a instalação de uma CPI para investigar os planos, sob a alegação de “falta de foco” da comissão. Meses depois, um parecer da consultoria legislativa da Câmara afirmou que o pedido atendia às exigências e era de “relevância nacional”. Cunha recebeu contribuições de campanha e atuou a favor dos planos. Nas eleições de 2014, as doações eleitorais dessas empresas superaram em 32 vezes o valor de 2012. Somaram 54,9 milhões de reais distribuídos a 131 candidatos.

Fonte: Ministério da Saúde e OMS/2013, respectivamente

Fonte: Ministério da Saúde e OMS/2013, respectivamente

A relação entre doadores e políticos é forte, segundo a avaliação de especialistas reunidos no 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. O maior exemplo é o aparelhamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Criada em 2000 para regular a atuação dos planos de saúde, a ANS sempre teve os cargos estratégicos ocupados por ex-executivos de planos de saúde. Para o médico Mário Scheffer, professor da Universidade de São Paulo, as indicações atendem aos interesses dos financiadores. “Em troca de dinheiro nas campanhas, o governo atende às pressões dos planos pelo aumento dos subsídios, pela desregulação do mercado e por cargos na ANS.”

Entre os subsídios citados por Scheffer estão o não ressarcimento das dívidas da saúde suplementar com o SUS e a renúncia fiscal para a área, estimada neste ano em 25 bilhões de reais. De acordo com a professora de Economia da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Bahia, o calote ao SUS é “imenso e incalculável”. Os planos não cobrem os tratamentos mais caros e jogam a conta para o sistema.

Além do baixo ressarcimento, as altas isenções fiscais concedidas pelo governo ameaçam a saúde pública, dizem os especialistas. De acordo com as previsões de 2015, apenas as renúncias superam em mais de 10 bilhões de reais os cortes decorrentes do ajuste fiscal. O governo, diz Piola, precisa fazer uma escolha política: ou apoia uma saúde pública ou um modelo calcado no sistema privado. “Estabelecer um limite à renúncia fiscal da saúde teria o efeito de mostrar qual a efetiva prioridade do financiamento. Não há garantia de que os recursos de isenção fiscal iriam para o SUS, mas certamente haveria maior pressão pela melhora dos serviços públicos.”

Em nota, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços, entidade sindical que representa os planos de saúde no País, afirma que a saúde suplementar é “um importante fator de equilíbrio no sistema brasileiro porque diminui a demanda do SUS e traz inovações e qualidade assistencial”.

A entidade também diz desconhecer as doações de campanha mencionadas ou que “alguma entidade tenha tido qualquer influência na indicação de qualquer dirigente da agência”. A ANS, por sua vez, afirma que os integrantes de sua diretoria possuem “ampla e reconhecida experiência em suas áreas de atuação”. Quanto aos valores ressarcidos ao SUS, a agência disse não considerá-los baixos e informou que “vem aprimorando e aumentando de forma expressiva os valores arrecadados”.

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