A marcha pelo impeachment: entre a fórmula mágica e a preguiça
(escrito por: Matheus Pichonelli)
Perdi as contas, nas últimas semanas, de quantos suspiros deixei escapar ao abrir a caixa de e-mail, os grupos de WhatsApp e as timelines do Twitter ou do Facebook. Reconheço estes suspiros: são a canalização dos mesmos cansaços, preguiças e desgostos de quando recebo correntes com fórmulas mágicas para problemas complexos. Contra estupradores, tome castração química. Contra a criminalidade, pena de morte.Contra a gravidez precoce, o fim do baile funk. Contra a corrupção, o impeachment, palavra da moda em diasrecentes.
De uns meses pra cá, todos parecem preocupados, não sem certa razão, com o estado das coisas. Todos parecem dispostos a mudar o mundo. E todos parecem ter as soluções definitivas e infalíveis na ponta da língua. Nesses momentos, os riscos de se debater a revolução com quem até ontem não media palavras para dizer que não gosta, não se interessa, não tolera o noticiário político é assistir, num camarote literal (às vezes regado a espumante e corte nobre), a um festival de bobagens que na melhor das hipóteses se encerram na urgência de outras demandas (o desfecho da novela, por exemplo) e, na pior, ao velho preconceito de classes.
O tema, oficialmente, é a inabilidade, a imprudência e a inoperância do governo (federal, pois neste mundo paralelo o poder é absoluto e a federação, um corpo estranho), mas as cotoveladas e espetadas no olho são direcionadas aos beneficiários das esmolas, aos sobreviventes de currais eleitorais, às cabra cegas de tapa-olhos afirmativos. Entre discussões calorosas sobre a preguiça e petulância dos empregados, entre a defesa da meritocracia (não vale citar o emprego nem o lobby por filhos e conjugues em nossas bolhas privativas, nem sempre privadas), são colocados em pauta os desmandos da República para demonstrar, nas entrelinhas ou não, o desprezo contra os alvos de sempre. É difícil sair de uma conversa do gênero sem se chamuscar em algum “nada contra, mas…” E dá-lhe odes ao separatismo paulista, ao incômodo com as ondas migratórias em direção às nossas riquezas ou à vontade de se mudar para países menos generosos com a nossa gentalha.
Dá preguiça, como dá preguiça ouvir soluções mágicas contra a volúpia do estuprador defendidas por quem não se envergonha em reforçar o discurso da culpa da vítima, das vulgaridades contemporâneas, das importâncias de se dar ao respeito para ser respeitada – os pilares que servem de colchão para um crime supostamente fora de nossa ação e alcance. É a cultura do atavismo a serviço da desinformação.
Nos debates acalorados sobre o impeachment de Dilma Rousseff, fica patente a nossa disposição cívica para enxugar gelo. Essa conversa ouvimos desde o Fora FHC, aludido pelas mesmas urgências que agora se rebelam contra o símbolo máximo, talvez único, de todas as nossas misérias: a presidenta da República. Em tempos de comoção, como estes, os mais assustados gritam por qualquer coisa. A rua é pública e o choro é livre, mas não deixa de ser curiosa a dificuldade para se encampar medidas efetivas para atacar o desmando agora alardeado. Nessas rodas de conversa, é firme a convicção de que estão acabando com nosso país – sobretudo por quem acaba de chegar de vigem aos exterior. Mas experiente perguntar os porquês. “Vou pra rua para combater a roubalheira”. “Quero mostrar minha indignação com tanto desmando”. “Gritemos contra a destruição da Petrobras”.
Ok, tudo bem, indignados estamos todos, mas o quanto estamos dispostos a arregaçar as mangas e debater as mudanças a fundo? Quando a corrupção esteve no cerne das nossas prioridades corporativas? Quando decidimos aposentar nossas carteiradas? E nossas carteirinhas falsificadas de estudante? Ou nossas carteiras de motoristas compradas à vista? Quando deixamos de desviar a água da rua para o nosso quintal?
Não deixa de ser estranho: parte dos manifestantes que agora tira o velho civismo do armário ontem aplaudia as cacetadas da polícia sobre manifestantes que denunciavam os abusos das tarifas de ônibus e metrô. Ou fazia pouco-caso com os professores da rede pública sucateada que trancavam o trânsito na avenida principal. Alguns, que até ontem falavam em Bolsa Esmola, agora juram indignação contra os ajustes em pensões e direitos trabalhistas.
O que mudou? Nada.
A grita contra a corrupção não é de hoje e está longe de ser imerecida. O mote é tão óbvio quanto ser contra a malária, e não faz arranhão aos que se regozijam, seguros e intocados, do nosso purismo. Na sequência da linha sucessória estão três caciques do PMDB, espécie de arroz-de-festa de todos os escândalos noticiados desde a reabertura democrática, da Castelo de Areia à Operação Lava Jato. Prova disso é que Collor se foi (e voltou) e a Tropa de Choque ficou – juntamente com os destaques sobre tesoureiros e tesourarias, ainda muito bem empregados.
O baluarte da mudança, que joga gasolina nas manifestações ao não dizer claramente que se opõe ao governo e não aos golpes, até hoje deve explicações sobre o uso de dinheiro público para a construção de aeroportos particulares no quintal de parentes. Deve explicação também sobre o direcionamento do agrado financeiro a publicações amigas. Este mesmo baluarte, que elege sem nomear a irmã como eminência parda, galgou postos e expressões públicas por uma meritocracia curiosa: o sobrenome. Seu partido, que agora flerta com as soluções fáceis, é protagonista deste e de outros negócios igualmente impudicos, mas não igualmente debatidos nas casas das melhores famílias. Um seu ex-presidente, por exemplo, é suspeito de receber uma boa bolada para ajudar a enterrar uma CPI que agora ressurge como palanque.
Nesse horizonte um pouco mais alargado, se há algo que não ameniza ou não deveria amenizar as suspeitas na Petrobras é que elas se desdobram desde outros expedientes. Ou que as empresas agora suspeitas de pagar propina em troca de contratos também financiaram campanhas de outras colorações. Não é menos desconfortável saber que, uma vez no governo, o PT manteve e aperfeiçoou as velhas práticas, transformando-se em mais um entre tantos partidos, como chegou a dizer sua figura máxima.
A desolação, embora combustível hoje para a velha indignação seletiva, é multipartidária, mas é bom lembrar: trocar o sofá da sala onde se consumou a traição não ameniza nosso impulso à infidelidade. Se alguém deseja de fato mudar o mundo, seus hábitos e vícios impublicáveis, é preciso um esforço mínimo para entender seu subtexto – e apreender a parte que nos cabe nele. Não adianta falar em limpeza ética e mandar o guarda caçar bandidos quando somos flagrados alcoolizados ao volante. Nem adianta falar em radicalismos se não vislumbramos a estrutura dos descalabros, que começa no financiamento de campanha e se encrespa no patrocínio às novas velhas legendas de aluguel.
Antes de ir às ruas, seria producente, inclusive recomendável, analisar o próprio revide e notar que a crítica aos detratores igualmente se aplica aos salvadores. No limite, vale questionar o que queremos de fato – expor nossas antipatias ou encampar as reformas necessárias? Mais que isso: o que dizem os nossos representantes direitos, do vereador ao senador, passando pelo nosso prefeito, a respeito dessas reformas? E a liderança do nosso partido favorito? Quais os projetos eles apresentaram na última legislatura? Quais as suas proposta para dirimir o fosso entre ricos e pobres ainda assustadoramente largo no país? Quem bancou as suas campanhas? O que eles defendem em plenário? Como sensibilizá-los? Com cartazes erguidos em dias de folga? Com mensagens à caixa de e-mail? Com pedidos de audiência com a sociedade civil organizada da qual somos convidados a fazer parte?
Apesar da aparente disposição em colocar tudo abaixo, nem sempre as respostas a estas perguntas são satisfatórias. Quanto mais nos afastamos da vida pública, mais nos tornamos a caricatura do cidadão vacilante, que terceiriza a função de eleger o que é bom para ele e vai dormir tranquilo o sono dos justos. Este é o caminho fácil. O outro, mais árduo, é se mobilizar, criar cartas de compromissos e buscar apoio e musculatura para encampar as mudanças consideradas urgentes. Algo parecido aconteceu na Grécia – mas este é o caminho mais difícil. Mudanças de fato exigem caminhos novos, e este é o desafio que o velho Fla x Flu, preso nas próprias sobreposições, parece incapaz de vislumbrar, entender e superar.
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