É das mulheres a opção de aproveitar a plenitude da amamentação
(fonte: Diário de Pernambuco)
Fernanda teve mastite três vezes em dois meses e pegou uma bactéria nos seios. Camila voltou ao trabalho antes do sexto mês do filho. Clara foi criticada porque se negou a oferecer leite artificial ao seu bebê recém-nascido. Lu ouviu de um médico que dois anos era tempo demais para amamentar. Ellis foi convidada a se retirar de uma galeria de arte porque estava dando de mamar. Na Semana Mundial do Aleitamento Materno, o Diario conversou com mães e profissionais para entender quais os desafios enfrentados por quem acredita na amamentação e como superá-los para mergulhar no universo do amor líquido.
Para receber Rui, hoje com sete meses, Fernanda Cabral, 33, foi atrás de informação. As pesquisas e a vontade de trazê-lo ao mundo com respeito acabaram os levando para um parto domiciliar, que ela lembra como um momento “lindo, maravilhoso”. Logo nos primeiros dias, no entanto, ela se deparou com o que seria seu grande desafio na maternagem. “Talvez por subestimar o tamanho desse desafio, acabei não me preparando realmente para a amamentação”, conta a profissional autônoma, que ainda tem dificuldade de falar sobre o assunto.
Nos dois primeiros meses de vida de Rui, Fernanda teve mastite (inflamação na mama) três vezes. Numa delas, a inflamação evoluiu para uma infecção e os cuidados foram feitos paralelamente ao tratamento contra um fungo. Depois de dois meses de tratamento ininterrupto com antibióticos, medicamentos para as rachaduras nos seios, visitas a mastologistas, obstetras e uma rotina estressante e dolorosa, Fernanda chegou ao seu limite. “Você está enfrentando o puerpério pela primeira vez na sua vida, na rotina com o neném, o peito já não começa a produzir a quantidade suficiente de leite, ao mesmo tempo que você está com muita dor e tem que tratar o bico que já está muito ferido e tem que ordenhar. Enfim, vira uma bola de neve e foi o meu caso”, lembra Fernanda, que se viu a ponto de rejeitar o filho. “Eu não queria mais que ele mamasse, eu estava saturada.”
Pouco antes de optar pelo desmame, ela ingressou no Mãe Nutriz, uma rede de apoio ao pós-parto. Foi quando desconfiou que o problema não era aquele apontado pelos médicos pelos quais tinha passado. “Uma médica do grupo chamou atenção e sugeriu que procurasse um dermatologista. Descobri que não tinha fungo, tinha uma bactéria no peito e o tratamento que me foi apresentado era diferente dos cinco ou seis que já tinha feito. Tinha casos, embora em pouquíssimos registros, que o bebê havia sido afetado neurologicamente pelo uso do antibiótico. Com o peito já mutilado e precisando ter uma vida com meu bebê, gostar da maternidade, tive que desmamar e fui atrás dos artifícios para alimentação dele”, relata, emocionada.
Fernanda acredita que se tivesse trocado experiências com outras mães, antes, se livraria do sentimento de frustração que a acompanha. “Acredito que se tivesse feito parte do grupo antes, bem como procurado a assistência médica adequada, teria caminhado de forma diferente. Estar em contato com quem passa pelas mesmas dificuldades que você acaba lhe fortalecendo para superar as suas dificuldades e minimizar suas dores e frustrações.”
Pós-licença pede jogo de cintura
Seis meses é o tempo indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para que o bebê se alimente exclusivamente do leite materno. No Brasil, onde a licença maternidade é de quatro meses, só 41% das crianças chegam ao sexto mês mamando exclusivamente e quem acredita na importância da amamentação precisa abrir mão de empregos convencionais ou se desdobrar para dar conta.
“Um pouquinho violentada.” Foi assim que a assessora técnica Camila Apocalipse, 27, se sentiu quando teve que voltar ao trabalho cinco meses depois de dar à luz Chico. Diante dos movimentos que estimulam a amamentação exclusiva até o sexto mês, ela critica a contradição. “No primeiro dia eu chorei bastante. Foi triste, eu sabia que não tinha que sair de casa naquele momento”, conta.
Apesar da dificuldade com os horários, Camila fez questão e conseguiu garantir que o pequeno se alimentasse só com seu leite materno durante o tempo necessário. “Eu trabalho viajando e com o fim dos seis meses chegou o segundo momento desse processo e tive que viajar. Ele tinha quase sete meses, fui numa segunda-feira e voltei na quinta. Tive medo que ele perdesse o interesse pelo peito, chorei e senti essa distância”, lembra.
Logo a rotina de sair do trabalho na hora do almoço para amamentar o filho em casa e depois no berçário deixou de ser, para ambos, um benefício. “É o momento importante da mãe com o bebê, não só pela questão nutricional, mas é a hora de olhar nos olhos, de trocar carinho. A mamada tem que ser leve e não estava sendo. Eu ficava olhando para o relógio, ele tinha 15 minutos para mamar e eu ficava tensa, apressada e não passava o que ele precisava”.
A opção foi trocar quantidade por qualidade e, aos nove meses e meio, Chico ainda mama em livre demanda, sempre que estão juntos – de manhã e à noite – e Camila pretende garantir o alimento e o afeto até os dois anos. “Enquanto estiver bom para mim e para ele, pretendo continuar. É importante para o desenvolvimento dele. Acredito no contato pele a pele, no sentimento de proteção, de acolhimento e de afeto e já vejo isso no meu filho, que é um bebê seguro e tranquilo.”
Amamentação prolongada. Precisa?
A OMS e o Ministério da Saúde entendem que o aleitamento materno deve ser mantido até o segundo ano de vida. Neste período, estima-se que 448 ml do leite da mãe garanta 60% da vitamina C que a criança precisa, além de 43% das proteínas, 36% do cálcio e 75% da vitamina A. Optar pela amamentação prolongada, no entanto, é lidar diariamente com opiniões de estranhos, olhares de reprovação e críticas.
“Ouvi muito que eu estava sendo limitada/aprisionada/escravizada pelo peito. Sério, as pessoas dizem isso o tempo todo nas falas mais simples sobre amamentação, mas sempre soube que amamentar é uma relação e que, se não quisesse mais, estava livre pra decidir parar. Falam que prejudica a vida profissional e sexual da mulher e isso é mentira. Eu realmente não podia viajar sozinha, acordei de madrugada por 2 anos e 4 meses e vazava leite do meu peito na rua, mas eu sempre entendi que aquela situação era uma escolha minha. Sempre entendi minha autonomia, nunca me vi como uma pessoa limitada, apesar das renúncias”, aponta a designer Lu Azevedo,30 anos, que desmamou o filho Valentim, em junho.
Ela conta que a experiência da amamentação não começou fácil e muito menos foi bonita e pontua os sacrifícios feitos, com apoio da família, em nome do que acreditava. Seios severamente rachados, médicos indicando complemento, baixo peso dela e, depois, a falta da vida social. Adiante no que acreditava ser o melhor para ambos, Lu diz que a consciência da escolha lhe ajudou a afirmar sua autonomia de mãe solteira.
Uma vez, no médico, ela perguntou se o remédio receitado poderia ser tomado mesmo sendo lactante. A resposta lhe deixou constrangida. “Ele me disse que não havia razão para amamentar tanto tempo. Daí questionei se não era indicação da OMS amamentar até dois anos e ele respondeu que isso era para controle de natalidade, porque mulheres que amamentam, supostamente, não engravidariam.”
A decisão do desmame veio depois e foi mais fácil do que parecia. “Ele disse que queria viajar com minha mãe e avisei que ele ficaria sem mamar. Topou e foram cinco dias de peito cheio e desconforto pra mim e três bons dias pra ele, seguidos de febre e muito choro. Quando ele voltou, me pediu o peito e não dei. Choramos juntos e só podia dizer para ele que nossa hora tinha chegado”, recorda.
Para Lu, amamentá-lo por tempo prolongado não fez dele uma criança dependente. “Valentim é um cara seguro e tranquilo. É super-parceiro meu e de todos que estejam com ele. Não faz birra por atenção e nem me demanda o tempo todo. Vai com todo mundo que fizer uma proposta interessante de brincar ou passear, vai à escola e nem me dá tchau às vezes. Acho que a amamentação, ao contrário do que dizem, supre as demandas de formação da segurança da criança. Uma criança que tem suas necessidades da fase atendida não se torna um adulto carente”, defende a designer, que acredita que a cobrança vai ainda além. “Existe um mundo todo querendo satisfações da mulher que não amamenta até os seis meses e da que amamenta mais de um ano. Existe um modelo de tempo que não respeita a criança nem a mulher”, dispara.
“Você não pode fazer isso aqui”
Era 2013 e a estudante Ellis Lombardi estava com o filho Thor, hoje com três anos, visitando uma galeria de arte do Recife. Durante o passeio, o pequeno pediu para mamar e ela, prontamente, atendeu sua demanda. Em pouco tempo foi abordada por uma funcionária. “Você não pode fazer isso aqui. Deveria ir para área de fora.” “Fiquei me sentindo humilhada, acusada, como se tivesse fazendo uma coisa feia ou errada demais”, lembra.
O caso, marcante, repercutiu nas redes sociais e na época provocou um mamaço dentro da galeria mas, segundo Ellis, o episódio não foi pontual. “Nunca tinha sido posta para fora antes, mas o constrangimento começa quando seu bebê é recém-nascido. Sempre tem quem chegue sugerindo que eu bote um paninho em cima, porque tem um tio ou um pai que são ‘de outra época’”, conta.
Diante dos muitos olhares – maldosos, dos homens e de reprovação, das mulheres – ela critica “uma coisa supernatural, sendo vista como se fosse errada”. Ellis amamentou o filho durante dois anos e um mês e acredita que quanto maior a criança, mais as pessoas se sentem no direito de interferir nas decisões e acredita que a discussão passa pelo papel da mulher dentro da sociedade. “O peito da mulher nunca é visto como uma coisa dela. É sempre direcionada aos homens. As pessoas têm dificuldade de olhar o corpo da mulher como dela”, aponta.
Estudante de universidade pública, ela chegou a ser reprovada por falta em plena licença maternidade e passou pelo processo inicial doloroso da amamentação, mas diz que vale a pena. “Você duvida de tudo, acha que nada vai dar certo, mas uma hora dá. O peito fica doído, a água bate e você fica arrepiada, mas depois você acostuma e é só parte boa, amamentar é maravilhoso, aquele olhinho para você, você é o mundo para aquele bebê. Amamentar já começa com ‘ama’, não tinha nome que definisse melhor, é só troca, carinho, afeto, a melhor coisa que você podia oferecer e você vai deixar isso por causa dos outros?”, questiona.
Empoderamento e arte
Logo no nascimento de José, hoje com um ano e nove meses, a arquiteta Clara Nogueira, 29, viu que precisaria estar empoderada. Diante dos 2,310 kg do recém-nascido foi preciso firmeza nas recusas aos conselhos que indicavam complemento alimentar. Ela conta que, por instinto, não cedeu ao movimento que tentava lhe tirar a crença na sua própria capacidade.
“Me deixava muito triste ver que as pessoas tiravam seu poder diante a coisa, lhe diminuíam. Parecia que estava cometendo um crime. Tive uma doula que me disse que tinha leite suficiente e esse empoderamento para mim foi importante, porque tive a necessidade de responder ao mundo e dizer que eu queria amamentar e que não ia dar complemento, mesmo ele sendo pequenininho.”
Meses depois, os olhares de reprovação continuavam e Clara continuava amamentado José. Uma vez, no ônibus, ela conta que ouviu um senhor cochichar que era um absurdo e discutir um pouco, sozinho. “Não respondi, não virou confusão. Me defendi amamentando”, conta. Ao compartilhar o episódio na internet, viu nos comentários histórias parecidas.
“Mães amigas comentaram, mandaram fotos amamentando seus filhos e fiquei tão emocionada, tive noção de como é um problema maior. Como bordo desde criança, comecei a bordar essas mulheres”, conta a arquiteta, que se prepara para expôr as obras ainda este ano.
Para Clara, o empoderamento é o caminho. “Tem homens que desviam o olhar e, ao invés de recuar, mostro mesmo o peito. Estou fazendo uma coisa normal e nunca o constrangimento me fez não dar de mamar. É mais uma tentativa de castração da mulher e ela, antes de lutar pelo seu espaço, procura um lugar mais escondido”, destaca.
Assistência de qualidade é indispensável
A sucção é um dos primeiros movimentos instintivos realizado pelo recém-nascido. Apesar disso, se preparar para a chegada de uma criança ao mundo deve ir além do enxoval e do quartinho do bebê. O aleitamento materno é apontado como vacina natural, capaz de reduzir em até 13% a morte de crianças menores de 5 anos por causa preveníveis. Para se preparar para esse momento, informação e apoio são indispensáveis.
Conselheira em aleitamento materno do Ministério da Saúde, Bernadete Dantas destaca que a mulher precisa estar preparada física e emocionalmente. “A preparação da mama é muito importante, expor os mamilos ao sol para evitar as fissuras e ter consciência de que o bebê não vai ter hora para mamar. Vai acordar de madrugada, porque o leite digere rápido”, explica pediatra, que coordena o banco de leite do IMIP e é diretora da Clínica de Aleitamento Materno (AMA).
Para a enfermeira, consultora de amamentação e criadora do grupo de apoio ao puerpério, Mãe Nutriz, Ludmila Cavalcante, a questão central ainda é cultural. “Estamos imersos em uma cultura de não-amamentação. É silencioso, a gente não percebe que o apoio que a mulher vai ter da família, dos profissionais até, em como lidar com esse comecinho é de não amamentar. ‘Já vai dar de mamar de novo? Vai acostumar mal’”, exemplifica.
Bernadete Dantas, frisa que a função do peito não é só alimentar. “O bebê precisa ser tocado, acariciado. É natural que queira o colo da mãe. Estranho seria se ele quisesse ficar no berço”, comenta a pediatra, que também fala da importância de evitar bicos artificiais. “Não é radicalismo, se você oferece mamadeira ou chupeta, ele desacostuma com o seio”, explica.
Para ambas, é preciso criar uma rede de apoio que incentive e dê segurança a esta mulher. “Amamentar não é só o processo nutricional, é mais complexo. Muitas mulheres querem amamentar, tem leite e não conseguem. Existem muitas questões envolvidas e isso não é muito visto. Existe uma singularidade em cada mulher, em cada fase. O apoio tem que vir de todo lado, do companheiro, da família e dos profissionais. É uma jornada longa”, diz Ludmila. “As mulheres precisam dessa mão amiga na hora e não marcar consulta”, completa Bernadete, sobre a importância da assistência que proporcione acolhimento. “Quando a gente está sabendo da importância do aleitamento e conta com apoio da família e dos profissionais de saúde, a gente tira de letra e vê como é maravilhosa a amamentação”, conclui.
Portal voltado principalmente para Surubim & Região, por meio de notícias e opiniões. Mas também direcionado para assuntos relevantes no restante do Brasil e do mundo em geral.