Entrevista com Ricardo Berzoini
(fonte: Carta Capital/André Barrocal)
Ricardo Berzoini já foi presidente do PT, ministro do Trabalho, da Previdência, da Coordenação Política e, hoje, comanda a pasta das Comunicações. Com tal versatilidade, é capaz de falar com desenvoltura sobre os dois assuntos a atormentar o governo Dilma Rousseff no momento. Segundo ele, o ajuste fiscal contra o qual se rebelam apoiadores da presidenta não sacrifica direitos e prepara uma “nova estratégia econômica”, em que os cofres não poderão ser tão exigidos durante um tempo. É normal, diz, que tal transição provoque “atritos” e insatisfações.
A situação fica “crítica para o governo” pois tal transição coincide com os desdobramentos da Operação Lava Jato. Com o PT posto como réu principal no noticiário, alimenta-se a fúria de setores da sociedade contra o Palácio do Planalto, como se viu no domingo 15. E ajuda-se a preservar um sistema político a exigir uma reforma. Sem proibir as doações empresariais de campanha, diz Berzoini, os escândalos irão se suceder, não importa o governo.
CartaCapital: O que esperar daqui para frente após as manifestações do domingo 15 que pediam a saída da presidenta?
Ricardo Berzoini: É um momento crítico para o governo, a gente vai ter de conviver com elas. De um lado, temos uma investigação sobre corrupção na Petrobras que parte relevante da mídia tenta associar diretamente ao governo, tenta culpar o governo. De outro, a economia está numa fase de transição entre um modelo usado para enfrentar a crise de 2008, crise esta que se prolongou, e um modelo que decorre de insuficiência fiscal. Não temos mais espaço fiscal para usar o modelo anterior. Migrar para um modelo fiscal menos ousado não é uma opção, é uma necessidade, só que isso coloca incertezas, as pessoas têm o direito de ficarem insatisfeitas, apreensivas e de não gostar. As manifestações não nos incomodam, mas não aceitamos atitudes golpistas, uma campanha de impeachment. Não há base legal para nenhum processo de impeachment.
CC: Como dialogar, como a presidenta disse que faria, com quem prega o impeachment?
RB: Não é um diálogo com a manifestação, é um diálogo com o País. Ou seja, movimentos sociais, movimento sindical, empresários, formuladores políticos, partidos, Congresso. Um diálogo sobre o que é essencial, como a migração para uma nova estratégia econômica e o combate eficaz à corrupção, sem achar que a corrupção é problema de um único partido. A corrupção, como já foi visto nos últimos anos, sempre tem uma origem empresarial, que corrompe setores da política, e numa cultura do jeitinho. Quando esse jeitinho cresce muito, torna-se um mega esquema de corrupção. Isso atingiu os governos Sarney, Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma e atinge governos estaduais de todos os partidos. Alguns inclusive com reincidência e frequência, como em São Paulo com o caso Siemens-Alstom.
CC: Como aprovar uma reforma política que elimine o financiamento empresarial de campanhas, origem de corrupção segundo o governo, se o partido dos presidentes da Câmara e do Senado, o PMDB, defende este financiamento?
RB: É um debate que tem de ser feito em toda a sociedade. O montante gasto na última campanha [5 bilhões de reais] foi totalmente fora da realidade dos partidos. Para financiá-lo, foram construídos, obviamente, canais que não são obrigatoriamente condutores da corrupção mas que aumentam muito o risco de um comportamento corrupto. E aí no meio sempre aparece quem também queira enriquecer. Nós deveríamos nos debruçar ou sobre a proibição rigorosa de financiamento empresarial ou sobre a imposição de um teto de gasto tão modesto, que inibiria gastos expressivos pois aí ficaria explícita a existência de caixa-dois. E se fizermos um pacto pela aprovação de um financiamento exclusivamente público de campanha, também precisa haver um teto franciscano, pois ninguém vai aceitar que o Estado gaste rios de dinheiro. Outra medida importantíssima é acabar com o show eleitoral na televisão, ou seja, manter o horário eleitoral mas simplesmente com o candidato e a câmera. Eu sei que alguém pode achar chato de ver, mas é mais chato lidar com corrupção.
CC: O PMDB acaba de apresentar uma proposta de reforma e de autoproclamar-se protagonista da reforma. Mas o partido é visto como um problema, que autoridade tem para conduzir esse processo?
RB: Digo há muito tempo: não haverá reforma política, e aí não vai nenhuma caracterização específica sobre o PMDB, sem participação da sociedade civil. Não é um problema dos partidos, é um problema da sociedade, incluídos os três poderes, empresários, trabalhadores, estudiosos, acadêmicos, religiosos. Sem uma reforma profunda, vamos ter crises sucessivas, envolvendo os diversos partidos, embora com o PT o foco fique sempre mais dirigido. Quando eu era presidente do PT, eu dizia aos empresários que eles deveriam ser um dos principais interessados em acabar com essa relação promíscua entre o mundo político e o setor privado.
CC: O STF ajudaria nesse processo se concluísse logo o julgamento sobre a constitucionalidade das doações empresariais, não?
RB: Não vejo razão para não concluir. Uma entidade da respeitabilidade da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] apresentou uma ação, esse julgamento avançou a ponto de termos praticamente uma unanimidade e aí, de uma hora para outra, alguém pede vista [ministro Gilmar Mendes] e não devolve. Por que razão alguém interrompe um julgamento que interessa ao País? Seis ministros já disseram que o financiamento empresarial é incompatível com a lógica da democracia, onde todos, em tese, são iguais. Ou seja, que o uso de recursos por quem tem mais recursos desequilibra o sistema político. Se o Congresso depois não concordar com a decisão, ele pode produzir uma solução para manter algum tipo de financiamento privado. O que é fundamental é que o Supremo conclua o julgamento.
CC: Como o senhor mesmo se perguntou: por que razão estão impedindo a conclusão do julgamento?
RB: Essa questão tem de ser refletida por todos. A ação é antiga [de 2011], demorou para vir à pauta [abril de 2014] e, quando veio, foi por que havia, como há, um sentimento nacional de que existe no sistema eleitoral uma promiscuidade entre o público e o privado.
CC: As manifestações do dia 13, organizadas por partidários do governo, mas com críticas à política econômica, receberam uma resposta mais firme da presidenta. Ela mesma usou a palavra “firme” e disse que está fazendo um ajuste fiscal com “convicção e paixão”. Por que reagir assim?
RB: O ajuste proposto não é perverso, nem atinge o coração dos direitos dos trabalhadores. Atinge situações específicas que não pegam a imensa maioria dos trabalhadores. No acesso ao seguro-desemprego, o Brasil está totalmente fora do padrão mundial. E a pensão por morte tem gerado distorções na Previdência. Nos dois casos, já havia uma discussão com as centrais sindicais e, mesmo que não houvesse a concordância delas, o assunto não foi inventado agora para o ajuste. Nos demais pontos do ajuste, como o fim de algumas desonerações de fôlego que o governo considera que foram além da conta, também não há nenhum tipo de prejuízo aos trabalhadores. Nós precisamos fazer uma transição entre uma estratégia econômica e outra, e não é possível fazer isso sem atritos. O governo tem um mandato de quatro anos para entregar aquilo que ofereceu à sociedade na campanha, não é de três meses.
CC: Mas o ajuste não fere compromissos de campanha? Está se mexendo em símbolos que se diziam intocáveis.
RB: Intocável é o direito. A regra de acesso ao direito precisa ser ajustada periodicamente. Aliás, o Brasil precisa de um debate profundo sobre seu sistema de seguridade social. O sistema tem uma ambição muito elevada mas não tem mecanismos de financiamento compatíveis com essa ambição. Como deputado, apresentei várias propostas para ampliar os canais de financiamento, mas reconheço que elas têm forte oposição do empresariado e dos setores mais ricos. Se quisermos manter esse padrão de seguridade, teremos de reforçar o financiamento, se não o sistema não pára em pé, até pelo aumento da expectativa de vida da população. Mas é preciso também, de outro lado, ajustar periodicamente as regras de acesso ao direito. Os principais países da Europa que há décadas praticam o modelo de bem-estar social fazem periodicamente a revisão das regras.
CC: Esse reforço no financiamento da seguridade seria a volta da CPMF?
RB: Não necessariamente. Podemos buscar outras soluções. Por exemplo: acabar com o mecanismo perverso que é a distribuição de juros sobre capital próprio, uma aberração brasileira que não existe em lugar nenhum do mundo e foi inventada no governo Fernando Henrique [para reduzir a tributação dos acionistas das empresas]. As grandes empresas certamente serão contra. Aí é aquela hora em que a política tem de arbitrar. Não há como se trabalhar na ampliação permanente de políticas de Estado se você diz o tempo todo que a carga tributária tem de ser reduzida.
CC: Chamar as camadas mais ricas a contribuir mais com o Estado está na essência deste projeto governamental iniciado em 2003. Hoje, essa bandeira talvez seja necessária para voltar a mobilizar o eleitorado que votou no PT em 2014 e está frustrado com o ajuste fiscal. É possível aprovar no Congresso a tributação dos mais ricos?
RB: O governo tem uma base parlamentar bastante heterogênea e isso dificulta a consecução de alguns objetivos dos partidos que estão à esquerda na coalização. O Congresso que temos é este que está aí e foi escolhido pelo eleitorado, temos de respeitar. Apesar disso, acredito que algumas teses são importantes e deveriam ser discutidas, como o imposto sobre grandes fortunas. Mesmo que não arrecade tanto, ele tem um sentido de justiça social. Eu sempre digo, quando questionado sobre questões tributárias, que fico satisfeito com o sistema dos EUA, não precisa nem ser o da França. O sistema tributário americano é muito mais justo do que o brasileiro. Impõe alguns ônus para setores mais aquinhoados e certamente esses setores, no Brasil, não gostariam de ser tributados pelo sistema americano.
CC: O governo vai encampar alguma proposta de tributação dos mais ricos?
RB: Essa é uma tarefa da presidenta. Evidentemente, a gente busca, no debate interno no governo, sempre colocar esse tipo de ponto de vista.
CC: O marco regulatório das comunicações poderia ter a mesma serventia de mobilizar o eleitorado progressista do governo. O senhor tomou posse assumindo compromisso com o tema. Três meses depois, qual é a situação?
RB: Estamos ultimando medidas internas para promover este debate. Não temos nenhuma disposição de recuar, mas mantemos nossa avaliação de que, se apresentarmos qualquer proposta não dialogada na sociedade com todos os atores, inclusive o empresariado, a chance de sucesso é irrisória. Se a gente conseguir afastar os fantasmas, há muito que avançar. Não há nenhum tipo de iniciativa deste governo que possa restringir liberdade de expressão e de conteúdo. Não existe censura no Brasil, a liberdade de expressão é cláusula pétrea.
CC: Quando os debates vão começar?
RB: Falar em data é precipitação. Temos compromisso de usar este ano para promover os debates, inclusive no Congresso.
CC: Debater no Congresso mesmo no atual ambiente político?
RB: Não preciso nem tomar a iniciativa, o Congresso me chama. Nas próximas semanas, irei a comissões e ao plenário da Câmara. Sou parlamentar e sei que o debate congressual, quando não existe ainda uma proposta pronta, permite pensar em voz alta.
CC: Então 2015 é para isso, debates?
RB: Não quero colocar prazos, porque significa colocar ultimatos. Vamos sentir como as pessoas se posicionam, como as empresas se posicionam, os movimentos, os partidos e aí avaliar qual o caminho a ser trilhado e em qual o ritmo.
CC: O cenário político atual ajuda?
RB: Se olharmos do ponto de vista estático, não. Mas eu confio na capacidade de reflexão das pessoas, acho que podemos levantar bons argumentos para discutir. Quando se fala nesse tema, se pensa sempre no todo. Mas nós temos questões específicas também. Por exemplo: como é o tratamento da TV pública, o que pode ser feito para melhorar sua qualidade e capacidade? Há questionamentos sobre o horário dos jogos de futebol, o excesso de apelo consumista para o público infantil, a erotização em certos programas de TV. O governo tem que ter abertura para todos estes temas. Embora o debate não esteja oficialmente aberto, já recebi dezenas de pessoas e movimentos e digo que ninguém tem hegemonia nesse assunto, parece a reforma política. Se não trabalharmos para quebrar barreiras e sectarismos, o assunto não avança.
CC: O senhor não vê hegemonia nem naquelas instituições com poder, como as tevês ou os grandes partidos no Congresso?
RB: Pode ser que em alguns setores, pelo poder econômico e de comunicação, haja uma hegemonia conservadora, de não mexer em nada mesmo que não esteja tudo ótimo. Mas, de um ponto de vista mais amplo, da sociedade, não.
CC: Os espaços para que esse debate ocorra são o Congresso e a mídia, o senhor não…
RB: E a sociedade. Ela tem muitos canais que a gente subestima no dia a dia, como universidades, movimento sindical, social, entidades empresariais.
CC: Mas o senhor acredita que é possível fazer debates que tenham repercussão concreta no Congresso, ou seja, com a aprovação de mudanças na lei?
RB: Se eu achar que não, é melhor desistir e arquivar qualquer pretensão. Se a gente tiver excesso de ansiedade, pode matar esse debate na origem. A paciência e a persistência projetam esse debate para frente.
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