Interino… E precário

(fonte: Carta Capital)
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O governo de Michel Temer é juridicamente interino e politicamente precário. Falhou em completar o golpe parlamentar ao não obter a necessária obediência da oposição social à nova ordem. Os usurpadores invadiram o governo, mas não ocuparam de todo o poder.
 
A seção legalista da sociedade sublevou-se e o governo interino tornou-se transitório, sem saber como será o dia de amanhã. Bem pode estar desalojado ao fim do prazo de vigência desta edição de CartaCapital. Troca o recurso da persuasão pela confissão da truculência militar com a mesma rapidez adotada no afastamento da legítima presidenta Dilma Rousseff. A cada episódio repressivo, contudo, fortalece a disposição de resistência na sociedade. Aparentemente, a cada tentativa de governar, perde poder.
A posse do presidente provisório e seu ministério: quem não sabia qual seria o resultado?

A posse do presidente provisório e seu ministério: quem não sabia qual seria o resultado?

Gago e tíbio, o precário governo de Michel Temer desconvida, desmente ou demite um ministro ou burocrata a cada dia. Só a miopia da sede de vingança ou a malévola esperança de esconder com sucesso os cadáveres dos traídos explicam a sem-cerimônia com que se apresentaram à plateia no dia seguinte ao golpe parlamentar, sem se dar conta da enorme decepção de muitos, que ativa ou passivamente patrocinaram o escândalo mundial de punir uma cidadã sem crime comprovado.
 
Que papelão começaram a desempenhar o presidente nacional da Ordem dos Advogados, o patético senador Cristovam Buarque, e até mesmo o suave ministro Luís Roberto Barroso, cruzado da tese de que só caberia ao Supremo Tribunal Federal a avaliação do rito do impedimento, ao se espantarem com a estampa do governo interino de Michel Temer.
 
Como assim, a surpresa? Foram incapazes de entender que o afastamento de Dilma equivalia à invasão de Temer e similares? Espanto assim manifestam as virgens desatentas às dores do coito interrompido… O oblíquo episódio em curso escapa às bem estabelecidas análises do funcionamento e eventual crise das democracias representativas. Está ausente a divisão entre as elites econômicas, partidárias e institucionais, variando, de crise em crise, a intensidade do estranhamento.
 
Aqui houve extraordinário consenso entre a esmagadora maioria do Legislativo, Tribunais de Contas, Tribunais Eleitorais e de juízes de primeira instância, com destaque para a investigação Lava Jato, e outros braços institucionais, protegidos pelo procurador-geral da República e pela maioria de ministros do STF, na proclamação de crimes imputados à presidenta Dilma Rousseff, a seu antecessor, Lula, e ao partido líder da coalizão governamental, o PT. Em auxílio ao festival, todas as associações empresariais se incorporaram ao desfile, com prêmio de melhor fantasia arrebatado pela Fiesp.
 
Merece registro particular o envolvimento da mídia. Não é incomum o apoio de meios de comunicação conservadores a intervenções militares ou civis contra governos populares. Peculiar foi a participação de todos no consenso pelo golpe. Liderados pelo Sistema Globo de Comunicação, o despudor da tergiversação, omissão e tortura das notícias encarcerou a opinião pública, salva em parte pelo esforço guerrilheiro de blogues. O monopsônio fático da Rede Globo, ao oferecer boas condições materiais de trabalho e bons salários, degradou a profissão de jornalismo no Brasil, submetendo profissionais outrora respeitados à exposição, a céu aberto, dos signos de capitulação.
 
Deve-se à competência desses profissionais o envenenamento emocional da população, o cultivo do discurso debochado a propósito da política, o rancor à solidariedade, a celebração da vitória individual ao preço do desalento do vizinho, a que o pornográfico BBB serve de incomparável modelo. Viu-se projeção política do estado de espírito BBB na demencial sessão da Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016.
 
A absoluta falta de compostura dos empresários-controladores transformou o Sistema Globo de Comunicação no mais poderoso instrumento de intimidação política do mundo inteiro. Essencialmente, o novo fenômeno do golpe parlamentar consiste no sequestro do direito constitucional de um povo e sua conversão em privilégio de assalto ao poder por maioria parlamentar. Quando é disso que se trata, o fundamental não é o quórum exigente para a decisão, mas a inexistência de vetos ao que pode ser decidido.
 
Impedir uma presidenta da República, deliberando que há crime onde não há, é o mesmo que consagrar a soma de que 2+2 perfazem 5. Substitui-se a objetividade numérica, o ordenamento jurídico positivo no impedimento sem causa, para o que extenso consenso e cumplicidade dos tribunais de Justiça são necessários e insubstituíveis. Em condições democráticas, só o poder constituinte da população, diretamente em plebiscitos ou por meio de assembleias especificamente eleitas, pode deliberar sobre o que é e o que não é. Por isso os paramentos ritualísticos de golpes parlamentares são irrelevantes. O STF, ao deliberar sobre isso, delibera sobre coisa alguma, é fuga.
 
Naturalmente, a lorota do 2+2=5 não se sustenta sem apoio extra. Leis e interpretações adicionais serão indispensáveis ao exercício de um governo usurpador, particularmente quando a violência institucional desnuda a causa teleológica dela: mutilação ou desativação de políticas sociais pró-populações pobres e miseráveis. Para tanto servem a contínua cobertura dos tribunais e, se convocada, dose crescente de coação física e emocional: pancada e difamação. É o destino do precário, provisório e incerto governo de Michel Temer. Enquanto durar, evidentemente.

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