Marcha leva às ruas do Recife o empoderamento negro

Danilo Lemos conta que raspava o cabelo porque "não dava problema", isso até entender que deixá-los naturais é uma forma de resistência. Foto: Paulo Paiva/DP/ D.A.Press

Danilo Lemos conta que raspava o cabelo porque “não dava problema”, isso até entender que deixá-los naturais é uma forma de resistência. Foto: Paulo Paiva/DP/ D.A.Press

(fonte: Diário de Pernambuco)

Cabelos lisos, pele clara, nariz afilado. O padrão de beleza pré-definido e diariamente enaltecido, seja pela publicidade, pela cultura ou pelas heranças racistas, pode impor à população negra uma espécie de autorejeição de sua aparência e, consequentemente, de sua identidade. Mas se declinar é uma forma de rejeitá-la, assumir e encarar os elementos estéticos também é uma maneira de resistir e reafirmar a negritude em uma sociedade racista. É com esse sentimento que, neste domingo, acontece no Recife a Marcha do Empoderamento Negro, que gritará por respeito nas ruas do Centro da cidade.

Durante toda infância e boa parte da adolescência Danilo Lemos, 20, usou o cabelo raspado “porque não dava nenhum problema”. No ensino médio, seduzido pela moda dos moicanos, resolveu deixar crescer e alisou o cabelo crespo. “Eu achava lindo, minha vó achava lindo, diziam que parecia um índio”, lembra. Só quando entrou em uma faculdade particular do Recife, onde era praticamente o único negro, entendeu que aqueles fios tinham muito mais do que um apelo estético: incomodavam e eram, por tanto, uma forma de resistência. “O cabelo externa sua luta, está ali o tempo todo, como símbolo, todos os dias”, diz.

Há cinco anos sem usar nenhuma química nos cabelos, Maria Clara fala em libertação: "Hoje me olho no espelho e vejo quem realmente sou". Foto: Paulo Paiva/ DP/ D.A.Press

Há cinco anos sem usar nenhuma química nos cabelos, Maria Clara fala em libertação: “Hoje me olho no espelho e vejo quem realmente sou”. Foto: Paulo Paiva/ DP/ D.A.Press

A professora Maria Clara Silva, 26, começou a usar química no cabelo aos 10 e durante 11 anos usou produtos que não tinham objetivo de alisar, mas amenizar a raiz e facilitar o cuidado. O processo de transição envolveu paciência e choro, mas devolveu à Maria a originalidade. Há cinco anos sem usar nenhuma química, ela fala em libertação. “Hoje me olho no espelho e vejo quem realmente sou. É uma libertação você se reconhecer e se achar bonita”, conta a professora.

Alvo de olhares e comentários agressivos e maldosos, Maria reconhece no seu gesto um ato político. “O preconceito fica mais claro quando você assume o cabelo natural. Com todo o sofrimento que o negro passou, aceitar-se é uma forma de encarar de frente e mostrar o valor que tem a minha pele, o meu cabelo, meu nariz.”

Depois de raspar a cabeça por 17 anos, o ator e blogueiro Joeb Andrade, 20, passou a se achar mais bonito com o crescimento dos cachos, mas a consciência do poder do seu black só veio junto com incômodo das pessoas na rua. “Uma vez, na parada de ônibus, um desconhecido parou o carro só para me mandar cortar o cabelo, porque era ridículo. Fora as indiretas, de dizer que ‘ali tem um cabeleireiro, bem baratinho’. Isso pessoas que nunca vi na vida. Hoje constranjo a pessoa de volta”, conta o blogueiro, que também é um dos organizadores do evento de domingo no Recife.

Joeb Andrade, um dos organizadores da Marcha, diz que, quando constrangido por atitudes racistas, devolve na mesma moeda. Foto: Fernando Maker/ Cortesia

Joeb Andrade, um dos organizadores da Marcha, diz que, quando constrangido por atitudes racistas, devolve na mesma moeda. Foto: Fernando Maker/ Cortesia

O cabelo crespo, ainda alvo de piadas preconceituosas, serve como instrumento para o racismo que muitas vezes é naturalizado e se camufla em comentários “despretensiosos” como ‘por que você não alisa?’. Em alguns ambientes de trabalho, por exemplo, mulheres e homens negros precisam abrir mão de sua identidade para serem aceitos. Isso porque a imagem do negro – e o que lhe representa – ainda carrega os esteriótipos racistas que lhe rotulam como sujo, burro, pobre, feio.

Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Dayse Moura acredita que resignificar elementos da estética negra, é uma forma de promover emponderamento. “Falar do cabelo, aceitar o cabelo, o nariz, a boca, a estética que lhe diferencia e tem relação com sua cultura, ancestralidade, é um elemento de articulação e empoderamento desse grupo racial. Assumir o cabelo crespo é assumir toda uma identidade negra e um legado também”, explica.

Como professora da UFPE, Dayse diz que percebe dentro da universidade cada vez mais pessoas assumindo o cabelo. “Vejo que alunas que alisavam, prendiam, tinham vergonha, foram participando de grupos de estudo e se apropriando da sua identidade. Esse é um dos pontos primordiais para assumir essa identidade negra e o movimento de resistência contra o preconceito e o racismo. É uma articulação para o enfrentamento”, acredita a coordenadora, que enxerga a Marcha do Empoderamento Negro como ato político importante.

"Será que ninguém nunca parou para pensar se não tem nenhum motivo por trás dessa falta de representatividade do negro na elite brasileira?", critica Nathália Rocha. Paulo Paiva/ DP/ D.A.Press

“Será que ninguém nunca parou para pensar se não tem nenhum motivo por trás dessa falta de representatividade do negro na elite brasileira?”, critica Nathália Rocha. Paulo Paiva/ DP/ D.A.Press

“É um fortalecimento porque dá visibilidade a questões que são ignoradas na escola e na própria sociedade. É falar desse sofrimento mas também das conquistas. É uma chamada para o empoderamento, chama crianças, jovens, mulheres para o movimento de resistência numa sociedade na qual a naturalização do racismo é aceita com tranquilidade”, diz.

Para Nathália Rocha, também da organização do evento, o racismo é silencioso por quem o comete, às vezes, até sem perceber. “Podemos notar o racismo, principalmente o institucional claramente em shoppings, lugares frequentados por elite, cargos de liderança nas empresas e instituições, faculdades, onde o número de negros é muito pequeno, a maioria dos poucos que são encontrados nesses lugares citados, estão como empregados e não como consumidores. Será que ninguém nunca parou pra pensar se não tem nenhum motivo por trás dessa falta de representatividade do negro na elite brasileira?”, provoca Nathália.

“Não acredito no conto de fadas de que o racismo vai acabar, mas o racista vai ter que parar quando os negros se empoderarem. Se eles se incomodam quando tem um pessoa negra com seu black power sozinha, imagina uma multidão marchando junta? É uma resposta ao homem que parou o carro para me constranger, para quem acha que temos que nos odiar, é uma resposta”, reflete Joeb Andrade.

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