O golpe do Facebook
A empresa de Zuckerberg tenta criar um monopólio mundial da comunicação, informação e jornalismo. /// Um aspecto peculiar da Cúpula das Américas no Panamá, dias 10 e 11 de abril, foi o papel do presidente do Facebook, Mark Zuckerberg. O jovem executivo (30 anos) circulou pela reunião dos chefes de Estado como se fosse mais um deles ou pelo menos como um presidente do Banco Mundial, não como mais um participante do fórum empresarial paralelo. Chegou a invadir, por engano, uma reunião entre os presidentes do Panamá e República Dominicana.
Vários líderes, inclusive a brasileira Dilma Rousseff, o mexicano Peña Nieto, a argentina Cristina Kirchner, o peruano Ollanta Humala e o panamenho Juan Carlos Varela se fizeram fotografar ao lado do executivo e com certeza julgaram isso positivo para a própria imagem. A oferta de “internet gratuita” do Facebook a países latino-americanos, a começar por Colômbia, Guatemala e Panamá, três dos governos mais conservadores do continente, recebeu quase tanta cobertura quanto a reconciliação entre Washington e Havana. Alguns se compraziam em considerá-lo representante de uma “nação” de 1,4 bilhão de usuários, maior que a China.
Aparentemente, a aura “libertária”, “democrática” e “revolucionária” da internet foi pouco abalada pelas revelações de Edward Snowden e Julian Assange. A NSA e suas similares, ou “o governo”, foram responsabilizadas por tudo de negativo ou duvidoso e as grandes empresas do Vale do Silício posaram como vestais escandalizadas, como se seu papel na operação não fosse essencial e consciente e seu uso político um subproduto inevitável. O ciberespaço continua a ser visto pelos usuários como um playground barato e inofensivo e seus empreendedores como gênios simpáticos e filantrópicos.
Seria mais sábio vê-lo como a versão atualizada da Terra dos Brinquedos do Pinóquio, de Carlo Collodi (ou a Ilha dos Prazeres da versão Disney), para onde crianças ansiosas para escapar do trabalho e dos estudos são levadas para uma sucessão de diversões gratuitas e inesgotáveis, mas ao cabo de algum tempo se veem transformados em burros e nessa forma postos a trabalhar por supostos benfeitores revelados como exploradores inescrupulosos.
O mundo estará mais maduro quando as ofertas, propostas e produtos de um Facebook, um Google, uma Apple ou uma Microsoft forem recebidas com o mesmo ceticismo saudável com que o público encara a publicidade institucional da Standard Oil ou do Goldman Sachs. Quando esse dia chegar, porém, provavelmente será tarde demais e o Vale do Silício terá controlado corações e mentes de forma mais completa do que Wall Street e Hollywood jamais sonharam.
Como explica o especialista Evgeny Morozov no jornal britânico Guardian, o Facebook não é uma instituição de caridade. Está interessado em “inclusão digital” tanto quanto agiotas em “inclusão financeira”. O projeto internet.org fornece conexão “gratuita” por celular aos pobres da América Latina, África e Sudeste Asiático, mas apenas ao Facebook e pouca coisa mais (como a Wikipedia). Muitos dos que se tornaram usuários da internet nos últimos anos têm a impressão de que ela é a rede de Zuckerberg, mas para esses isso será estritamente verdade.
Isso é difícil de conciliar com o marco civil da internet que o governo brasileiro tanto se empenhou para aprovar em 2014. Para cobrar de Zuckerberg pelo acesso ao Facebook, as operadoras têm de acompanhar a navegação e guardar os dados de acesso, o que é proibido. Dar-lhe prioridade de tráfego viola a neutralidade da rede. O próprio princípio de fornecer conexão gratuita a determinados sites e cobrar pelo restante é de legalidade duvidosa. Se a regulamentação autorizar essa prática, pode esvaziar a lei de qualquer sentido.
Lembra a política da Microsoft de oferecer softwares gratuitos ou muito mais baratos a escolas, estudantes e serviços públicos para aprisionar usuários em seu sistema, a ponto de não cogitarem outro quando se tornassem consumidores ou empreendedores. Mas é muito mais. Além de condicionar a maneira de navegar na internet, o Facebook lucrará ao dispor dos dados pessoais e coletivos sobre esses usuários para vendê-los a empresas ou disponibilizá-los ao Estado e monopolizar a atenção desse público melhor que qualquer rede de TV.
Como sabe quem já usou o Facebook, este tem a política de criar dependência para depois cobrar cada vez mais caro pela interação. Empresas e celebridades que chegaram a criar um público considerável na rede de repente descobriram que teriam de pagar para que seus “amigos” continuassem a ver suas mensagens.
Ao mesmo tempo, a rede impõe regras arbitrárias. Uma delas é o veto a pseudônimos e duplas identidades. Zuckerberg alega ser tal prática “falta de integridade”, mas a verdadeira questão é garantir a real identidade dos usuários para que as informações sobre eles tenham maior valor. Assim como um pseudônimo pode ajudar a escapar da perseguição de um regime autoritário, permitiria driblar a curiosidade de um empregador ou seguradora sobre opiniões políticas, relações afetivas, consultas, exames, compras e percursos nas horas de lazer. Ou, quando bugigangas como o Apple Watch forem comuns, acompanhar seus batimentos cardíacos, pressão e dieta. Nunca as pessoas foram tão transparentes para governos e empresas – e, ao mesmo tempo, nunca essas instituições foram tão opacas para o público.
Os critérios de “moralidade” da rede, aparentemente arbitrários, seguem uma lógica igualmente comercial. Sua censura é conhecida por ignorar cenas de violência extrema, ameaças de morte e racismo explícito enquanto chega a extremos ridículos de moralismo como os de bloquear a foto histórica de uma indígena na página do Ministério da Cultura e uma reprodução de A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, por um professor de arte. Não se trata de seguir qualquer ética coerente, mas de criar um ambiente no qual uma classe média puritana se sinta à vontade para navegar e empresários para anunciar.
As leis dão ao Facebook, como entidade privada, o privilégio de proibir conteúdos como bem entender. O problema é quando o monopólio prático do acesso a um meio de comunicação cada vez mais indispensável, principalmente se apoiado por convênios com governos nacionais, proporciona o controle de fato do espaço público. É como entregar a uma empresa privada a gestão de todas as ruas, praças, praias e parques e fazer da cidade um shopping à mercê das normas de comportamento dos proprietários, sem possibilidade de recurso à Justiça.
A ambição da rede é acostumar os usuários a recorrer a Zuckerberg para tudo e hospedar dentro de seus limites todo tipo de negócios. Quem quiser levar espetáculos, notícias, publicidade, educação, serviços ou vendas às massas terá de se entender com ele e aceitar suas condições.
No tocante à mídia e ao jornalismo, o plano é levar algumas das maiores empresas a se hospedar dentro da rede social. Espera-se que os primeiros a aceitar a proposta incluam The New York Times, BuzzFeed e National Geographic, talvez também The Times, Quartz e Huffington Post. Em troca de administrar sua própria publicidade e informações sobre leitores e espectadores, esses veículos dividiriam receita (e talvez dados) com Zuckerberg, que administraria sua publicidade. Mesmo em 2014, antes da concretização desses acordos ou dos planos de “internet gratuita”, o Facebook se tornou a principal fonte de notícias para uma fatia assustadora do público: 67% no Brasil, 57% na Itália, 50% na Espanha, 37% nos EUA.
Acreditar que isso não afetará os conteúdos é mera ilusão. Esses veículos teriam marca e identidade diluídas e teriam de se sujeitar à cultura e prioridades do Facebook, explicitadas por Zuckerberg a um jornalista que o questionou sobre os critérios dos algoritmos que decidem as notícias exibidas a cada usuário: “Um esquilo no seu jardim pode ser mais relevante para seus interesses atuais do que gente morrendo na África”. O público não quer ouvir sobre problemas alheios e sim de seus gostos e decisões cotidianas. Textos longos, principalmente se exigem algum esforço ou causam algum desconforto ao leitor, são menos úteis do que fofocas de celebridades, informações superficiais e engraçadas, fotos de gatinhos, dicas de consumo e problemas do cotidiano. Mais Beyoncé e menos Boko Haram.
Dada a possibilidade de definir o perfil individual do usuário, pode selecionar o tipo de notícia e informação conforme suas crenças e preferências. O Facebook é muito bom nisso. Testes mostraram que com analisar 70 “curtidas” na rede se pode conhecer o perfil de uma pessoa melhor que um amigo ou colega de quarto, com 150, melhor que um pai ou irmão e, com 300, quase tão bem quanto um marido ou esposa. Não só ele, como certeza: no Google, os interesses indicados por buscas anteriores decidirão se ao buscar por “Egito” o internauta encontrará informações turísticas, oportunidades de negócio, biografias de faraós ou detalhes sobre as últimas arbitrariedades da ditadura militar.
De certa forma, isso acontece com a mídia tradicional. Ao escolher uma revista e não outra, o leitor escolhe uma abordagem, um ponto de vista e uma temática. Mas isso envolve certo grau de escolha consciente e nada impede que, vez por outra, experimente outra publicação. Na rede, é a notícia que escolhe por quem será lida, e uma vez que o perfil do usuário se defina, suas oportunidades de escolha são, na prática, reduzidas. Depende apenas de Zuckerberg decidir se é mais lucrativo manter cada um em sua zona de conforto ou influenciar sutilmente suas opiniões na direção mais conveniente aos interesses dos controladores da rede. Nenhum ser capaz de refletir deveria estar disposto a reforçar seu monopólio e lhe dar ainda mais poder. Confiar numa empresa como essa para prestar um serviço essencial é tão sensato quanto entregar a gestão do Banco Central ao Goldman Sachs, a Petrobras à Exxon ou a polícia e Justiça a uma empresa de mercenários.
(fonte: Carta Capital)
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