O SUS sobreviverá à era Bolsonaro?

Três décadas depois da sua criação, o Sistema Único de Saúde entra na fase mais crucial da sua história. Embora repleto de problemas, principalmente nos grandes centros urbanos, e historicamente subfinanciado, o SUS está entre os modelos mais abrangentes de atendimento no planeta. Cerca de 70% da população brasileira depende exclusivamente do serviço público e muitos tratamentos de alta complexidade só são oferecidos pela rede estatal.
 
O embate com Cuba no caso do programa Mais Médicos e a escolha do deputado Luiz Henrique Mandetta para o Ministério da Saúde indicam, porém, um propósito de desmonte do SUS a partir de janeiro de 2019, quando Jair Bolsonaro recebe a faixa presidencial de Michel Temer.
 
Apesar de ter prometido respeitar a Constituição, Bolsonaro não mede as consequências de suas diatribes ideológicas. O caso do Mais Médicos é sintomático. A partida dos cerca de 8 mil profissionais cubanos vai deixar, ao menos temporariamente, 2,8 mil municípios e 34 distritos sanitários especiais indígenas sem atenção básica de saúde, um dever do Estado, estabelece a Carta Magna.
 
O futuro ministro da Saúde, ortopedista e deputado federal pelo DEM do Mato Grosso do Sul (não reeleito para o próximo quadriênio), não parece preocupado. Uma de suas primeiras declarações após o anúncio de sua indicação, na terça-feira (20), teve um alto teor político.
 
“Esse era um dos riscos de se fazer um convênio terceirizando uma mão de obra tão essencial. Os critérios, à época, me parecem que eram muito mais um convênio entre Cuba e o PT, e não entre Cuba e o Brasil, porque não houve uma tratativa bilateral. Mas sim uma ruptura”, disse Mandetta.
 
A indicação do deputado para o segundo ministério com maior orçamento em 2019, 128 bilhões de reais, contou com o apoio da Frente Parlamentar da Saúde, de entidades da área médica e dos hospitais filantrópicos, como as Santas Casas – após o atentado à faca, Bolsonaro foi operado emergencialmente na unidade de Juiz de Fora (MG), que acaba de receber o repasse de 2 milhões de reais via emenda parlamentar do ainda deputado e presidente eleito.
 
Mandetta é investigado por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois na implementação de um prontuário eletrônico quando era secretário de Saúde de Campo Grande (MS), entre 2005 e 2010. De acordo com o jornal O Globo, a Amapil Táxi Aéreo apresentou notas fiscais e recibos ao Ministério Público Federal no valor de 21 mil reais, apontando o sul-mato-grossense como beneficiário de uma série de voos particulares pagos pela Telemídia, uma das empresas concorrentes do pleito.
 
Os investigadores do MPF suspeitam que as viagens, ocorridas entre junho e julho de 2010 quando o futuro ministro era pré-candidato a deputado federal, possam ser a contrapartida pela sua atuação. Outros dois fatos também chamam atenção na biografia de Mandetta: em 2014, recebeu a doação de 100 mil reais da operadora de planos de saúde Amil; e, entre 2001 e 2004, ele foi presidente da Unimed de Campo Grande.
 
O deputado de boas relações com as operadoras privadas de saúde, além de endossar os atos de Bolsonaro – que, cinco dias após a nomeação, já o desautorizou publicamente a respeito da eventual criação de um exame para certificação dos diplomas dos graduados em medicina –, será o responsável por colocar em prática as propostas dessa área do futuro governo, resumidas em modestas cinco páginas no plano registrado no Tribunal Superior Eleitoral. Em linhas gerais, elas tendem a tratar a saúde como um negócio e não como um direito fundamental dos cidadãos.
 
A avanço do mercado privado de saúde no desmonte do SUS
 
A coisa pública intersecciona com o setor privado com maior evidência no órgão regulador dos planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Com muitas denúncias de atuar em benefício da iniciativa privada, a ANS vive uma crise administrativa desde meados de 2017, tendo ficado com uma de suas cadeiras da diretoria colegiada vaga por mais de um ano e ainda hoje sem presidente efetivo devido a disputas de loteamento político. Em nota, a agência nega a crise, mas em seu site Leandro Fonseca da Silva consta como Diretor-Presidente Substituto.
 
Em junho, a agência gerou polêmica com a publicação de normas que alteram os novos contratos dos planos de saúde, flexibilizando regras de franquia e autorizando a cobrança de até 40% do valor de exames e consultas aos usuários adeptos da modalidade de coparticipação com empresas.
 
No mês seguinte, a ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, suspendeu a resolução em decisão liminar provisória após ação da OAB. “Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro. Direitos conquistados não podem ser retrocedidos sequer instabilizados”, alegou na decisão.
 
Profissionais e especialistas da área, no entanto, seguem temerosos nas previsões e análises, pois acreditam que os atos de precarização dos últimos anos, a partir da emenda constitucional do “Teto de Gastos”, que limita os investimentos em saúde e educação, aliados às declarações do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a redução da presença do Estado e a simplicidade do plano de Bolsonaro, provoquem maiores investidas dos agentes particulares em detrimento do SUS.
 
“O capital financeiro internacional é um dos maiores interessados em acabar com o SUS, porque os planos privados de saúde têm crescido mais de 10% nos últimos três, quatro anos no Brasil. São planos subsidiários de bancos, intercalado com o capital da saúde no caso, que enxergam amplo espaço de atuação e ascensão. Do ponto de vista político, acabar com o SUS obriga a população a ‘consumir’ mais saúde privada, abrindo mão dos seus direitos”, afirma Matheus Magalhães, consultor do Instituto de Estudos Socioeconômicos.
 
Em 2017, União, estados e municípios gastaram por dia apenas 3,48 reais por habitante, ou 1,2 mil reais por ano, segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina. Em entrevista ao site da entidade, o presidente do CFM, Carlos Vital, disse que o modesto crescimento absoluto do gasto per capita – em 2016 foram 3,39 reais – está longe dos parâmetros internacionais e segue insuficiente para responder às demandas da população, que apresentou mudanças nos perfis socioeconômico e epidemiológico.
 
Prova disso é o aumento do número de desempregados e desalentados, que provocou o abandono de 66 mil pessoas dos planos privados entre junho de 2017 e junho de 2018, segundo o Instituto Estudos de Saúde Suplementar; estimativas menos conservadoras apontam êxodo na casa de 3 milhões de brasileiros nos últimos quatro anos, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar restando 47 milhões de conveniados.
 
O envelhecimento da população é outro fator ignorado pelo poder público na expansão de recursos. Já na outra ponta, essas razões, num contexto de crise econômica, se apresentaram como oportunidade ideal para as operadoras dos planos emplacarem a agenda liberalizante de preços e ofertas.
 
Segundo Magalhães, a redução dos investimentos em infraestrutura de saúde coincide com o achatamento dos salários dos profissionais do setor, o que agrava o quadro de desmonte do SUS. Em convergência com a reforma trabalhista, uma das estratégias para rebaixar os vencimentos ocorre há anos por meio da contratação das Organizações Sociais de Saúde (OSS) para fazer a gestão dos serviços públicos. “Embora não tenham fins lucrativos”, explica Magalhães, “as OSS possuem uma lógica empresarial que visa ganhos de eficiência. E um dos caminhos é o corte dos gastos com pessoal”.
 
A contradição se aprofunda no genérico plano de Bolsonaro, em especial no item Médicos de Estado, um plano de carreira “para atender as áreas remotas e carentes do Brasil”.
 
Segundo o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald dos Santos, essa é outra das bravatas do futuro presidente, que não explica como aplicar tal medida em um sistema subfinanciado. Recentemente, o Congresso e a União promoveram longo embate de vetos para promulgar o piso de 1,25 mil reais para agentes comunitários em saúde. No caso da corporação médica, de acordo com Santos, a previsão mais discreta é de que a categoria proponha pisos de 20 mil a 25 mil reais.
 
“A demanda de carreira de Estado não é apenas dos médicos, mas de todos os profissionais da saúde. É importante o Estado se responsabilizar e estruturar carreiras que possam alocar os profissionais de acordo com a necessidade de cada região. Mas como Bolsonaro vai falar em carreira de Estado se o Paulo Guedes fala a todo tempo que deve existir menos Estado?”, pergunta o especialista.
 
O plano de governo projeta ainda a criação do Prontuário Eletrônico Nacional Interligado como “pilar de uma saúde informatizada e perto de casa”, que irá “reduzir custos e facilitar o atendimento futuro por outros médicos em outros postos ou hospitais”. A medida servirá para cobrar maior desempenho dos gestores locais e registrar o grau de satisfação dos pacientes ou responsáveis.
 
As sintéticas 13 linhas desse item seguem a tendência geral do documento de não formular a implantação do sistema, e o trata mais como uma questão técnica do que como política nacional.
 
“Esse é um procedimento importante que está em construção há mais de 15 anos. Não é uma solução simples, um ato de vontade. O uso das tecnologias na gestão é um caminho sem volta, mas o Prontuário Eletrônico Nacional Interligado é um debate de soberania nacional, de defesa nacional, de autodeterminação. Existem disputas em todo o mundo para o gerenciamento de bases de dados”, previne Santos.
 
(fonte: Carta Capital)

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