Polarização política, reflexo de uma sociedade murada
(fonte: Carta Capital)
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O muro de aço de 80 metros de extensão que rasgou a Esplanada dos Ministérios em Brasília em duas, dividindo grupos favoráveis e contrários ao impeachment de Dilma Rousseff, tornou-se um dos maiores símbolos da polarização política extrapolada para as ruas. Ao mesmo tempo, a barreira de aço dá pistas sobre o processo histórico que originou o rompimento de consensos entre partes consideráveis da população, a ponto de se tornar uma questão de segurança pública e exigir a instalação de um muro literal, a fim de evitar ou mitigar um possível enfrentamento entre os dois grupos mobilizados.
O muro, erguido com o trabalho de detentos do sistema prisional e estendendo-se da Catedral Metropolitana ao Congresso Nacional é, na visão do psicanalista Christian Dunker, um dos sintomas de uma forma de vida alimentada pela hiperindividualização e pelo encolhimento do espaço público. Na vida segregada, diz ele, se desaprende a ver o outro político. “A exclusão dessa possibilidade de diálogo aconteceu de tal forma que o antagonismo político agora gera medo, ódio e ressentimento social”, explica o autor de Mal-estar, Sofrimento e Sintoma – A psicopatologia do Brasil entre Muros. Dunker lembra que, no Brasil, o ideal da vida murada começa a tomar os espaços sociais, principalmente nas grandes cidades, a partir da década de 1970.
Um fator fundamental, segundo o psicanalista, foi a maneira de pensar a ação do Estado na época. Os condomínios fechados seriam uma espécie de concessão estatal, que permitiu a privatização do espaço público diante de impossibilidade de oferecer soluções para problemas sociais, como a segurança pública e a desigualdade. “O condomínio fechado virou um grande ideal de consumo para a classe média, queremos viver numa casa em que possamos ficar isolados do outro. Essa lógica pulverizou-se, ao longo do tempo, em condomínios econômicos, políticos e culturais”.
Paulo Sergio Pinheiro, ex-ministro de Direitos Humanos no governo FHC e ex-integrante da Comissão da Verdade, também vê como pano de fundo para a polarização a profunda desigualdade social e econômica existente no Brasil. Para ele, as estruturas da desigualdade permanecem intocadas, apesar dos avanços recentes; “Ainda que tenha havido um aprofundamento das políticas sociais, com muita gente saindo da pobreza, o núcleo dominante continuou o mesmo”, diz Pinheiro.
O outro invisível
Em contexto de desigualdade e muros cada vez mais altos, a invisibilização do outro é um passaporte para que a fantasia sobre quem pensa diferente comece a prosperar, de tal forma que o diálogo torna-se impossível. “Esse bloqueio fundamental é uma experiência de desaprendizagem política”, afirma Dunker. Nessa lógica, o diálogo de surdos e as generalizações desqualificantes, expressas na dualidade “coxinha” versus “petralha”, prosperam. “Você é identificado como coxinha ou petralha e, partir disso, é objeto de monólogo. Você não consegue mais responder de outra posição. É um sintoma, como dizemos na psicanálise, dessa estratégia de vida baseada no muro”.
Para Dunker, ainda falta distanciamento histórico para o entendimento profundo do momento pelo qual o País passa, mas uma ideia inicial é que a polarização começa a ser fomentada a partir do momento em que os limites da vida no condomínio fizeram água, isto é, não foram mais suficientes. O psicanalista localiza esse momento, simbolicamente, em junho de 2013, com a explosão das manifestações motivadas, inicialmente, pelo debate da tarifa no transporte. “Por um motivo ou por outro, de esquerda ou de direita, voltamos para as ruas, para a praça pública”, diz. Neste momento, afirma o psicanalista, sentimos os efeitos do pouco contato com opiniões contrárias. “Quando se volta à rua, esquecemos que desaprendemos como fazer política”, diz.
Paulo Sergio Pinheiro acrescenta que a baixa qualidade do Legislativo e a grande imprensa, que estimula a transformação do debate em “um Fla-Flu de baixo nível”, também contribuem para a polarização atual. Ele concorda, entretanto, que a ida às ruas escancarou a polarização. “Isso vem desde as manifestações. É um processo que começou nas ruas, mas que eu me recuso a ver de forma isolada da própria evolução do que ocorre dentro do Congresso”, diz. “Então essa questão da intolerância e da dificuldade do diálogo tem de ser colocada nesse contexto, não surgiu de repente”.
Impeachment
Dunker e Pinheiro concordam que a polarização não se encerrará com um eventual afastamento de Dilma Rousseff da Presidência. Seria necessário, na visão de Dunker, que o Brasil passasse por um processo semelhante ao enfrentado pela África do Sul após o fim do regime de Apartheid ou ao que outros países passaram após situações de grande polarização. “Precisaríamos de uma espécie de psicanálise do País para que o ressentimento fosse tratado. Mas, pelos motivos que levaram a essa crise, não confio que isso vá acontecer”, afirma Dunker.
Paulo Sérgio Pinheiro também não está otimista. “Acho que o agravamento (da polarização) será pior em um governo Temer. Haverá manifestações, e a lei antiterrorismo poderá ser usada magnificamente. Em certo momento poderá surgir a tentação de chamar as Forças Armadas ou de aumentar a repressão, controlar a liberdade de expressão, cercear o direito de reunião. Claro que tudo isso eu estou pintando com tintas muito amargas, mas acho que o que está no horizonte é isso”. “De onde virá o discurso pela conciliação? Hoje não há, não há partido, movimento social ou político que esteja trabalhando publicamento por isso. Daí o pessimismo no curto prazo”, analisa Dunker.
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