Da seca ao saque do capitalismo
(escrito por: Silvia Bessa, Diário de Pernambuco)
Parecia um julgamento popular. Defronte à delegacia do Centro do município de Abreu e Lima, sexta-feira ao entardecer, populares se amontoavam com celulares à mão. Chegou um casal num carro, geladeira amarrada por uma corda e coberta por um pano. Vaias. Ouvia-se em coro: “ladrão, ladrão”. Um homem entrou pela porta da delegacia a pé, carregando uma TV de plasma pelos braços. “Roubou para assistir a copa, foi?”, alguém gritou. O restou, riu. Do meio da rua, o povo avistou uma máquina de lavar sobre a carroceria de uma caminhonete cabine dupla. “Eita, mais um. Vai inventar o quê?”, perguntou uma senhora em tom agudo. Outros entoaram mais uma vez o “ladrão”, “ladrão”. Tinha cerca de 300 pessoas eufóricas.
O alvo delas eram vizinhos do bairro do Timbó que devolviam à polícia objetos fruto de saques ocorridos nas seis dezenas de lojas comerciais durante a greve da Polícia Militar. Entre uma devolução e outra, mais uma viatura da polícia estacionava na calçada. Dentro delas, eletrônicos e alimentos, resultado de apreensões. Para a polícia, aplausos. Policiais e alguns populares garantiram: em meio à multidão, havia saqueadores e receptadores de objetos roubados.
Pós-selvageria, saques e devoluções de objetos às autoridades, foi assim – com uma crise de moralidade exposta em público – que se deu o fim de uma semana que revelou novos padrões de comportamento social em Pernambuco.
“É algo inusitado tudo o que se viu. Conhecíamos saques do retirante da seca, agora temos um elemento diferente, o saque do capitalismo, por pressão das propagandas e do consumo. É complexo e deve ser tema de debates acadêmicos”, afirmou Ana Elizabete Mota, do departamento de serviço social da UFPE, que estuda pobreza, sociedade e seguridade. “Me chama atenção que os saques não tenham sido realizados pelo que a gente chamaria de bandido”.
Na delegacia de Abreu e Lima, já passam de 200 os objetos devolvidos. Há quem chegue dizendo “Não sei por que fiz isso”, “estou arrependido”. Surpreendem com outras declarações como “colocaram isso no quintal de casa”. A maioria não tem antecedentes criminais, trabalha e nega participação em saques. “Um homem ofereceu a máquina de lavar à minha filha. Ela comprou porque quer me dar de presente dos dias das mães”, disse Ginalva dos Santos, doméstica, 35 anos.
Ginalva saiu mais rápido que a moça loira de olhos verdes, que devolveu uma geladeira. “Não sabia que podia dar cadeia. Só fiz comprar por preço baixo”, justificou ela, que é frentista.
Pelas pessoas com quem teve contato, o delegado Alberes Félix acredita que maioria não roubou por necessidade, mas por oportunidade, impulso e certeza da impunidade. Já são 19 presos levados ao Cotel; Os que foram à delegacia espontaneamente serão ouvidos e inquéritos serão abertos. Serão punidos, ainda que o “arrependimento” abrande a pena deles.
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